sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Tive tempo

Uma alameda me inspira, tive tempo para um passeio por entre árvores e a gostosa luz do sol.

Passei na ilharga de um grande obstáculo, superando-o a uma considerável velocidade, e assim segui em frente.

Vi uma maçã a amadurecer, primeiro verde, depois amarela e por fim vermelha. Tive tempo para apreciá-la e saboreá-la.

Vi depois uma nuvem lilás se aproximar e me envolver, e num átimo levar-me ao céu. Despi-me de toda insensatez e despedi-me de todo amor desta terra.

Tive tempo para ver no espelho o halo branco da nuvem lilás, a rapidez com que me envolveu e me impeliu, muitos e muitos metros à frente do lugar que acreditava ser meu.

Tive tempo para sentir o choque, a dor, o ódio. Tive tempo para vir em casa e despedir-me dos meus pais. Tive tempo para ver o rosto da nuvem. Tive tempo para voar pela janela e dizer tudo o que me vinha à mente, tantas palavras atropeladas, tanto desespero por causa do desconhecido.

Eu só não tive tempo de engatar a primeira.

sábado, 6 de novembro de 2010

E assim segue a medicina...

"A arte é longa, a vida é breve", diz Hipócrates, justificando perder um paciente durante a cirurgia.

E tome-lhe processo. Diante do juiz, tenta se explicar:

"A vida é breve, a ocasião fugaz, a experiência vacilante e o julgamento difícil."

Promotor que é, Confúcio quebra a ficha do sujeito:

"Quando os médicos diferem, o paciente morre."

Voltaire, um brilhante advogado de defesa, manda:

"A arte da medicina consiste em distrair o paciente enquanto a natureza cuida da doença."

Martinho Lutero, parente do morto, só quer que isso acabe logo:

"A medicina cria pessoas doentes, a matemática, pessoas tristes, e a teologia, pecadores."

Sócrates, chamado a depor, não acrescenta nenhuma novidade ao processo:

"Só sei que nada sei."

Por fim, Mark Twain, atacando de juiz, dá por encerrado o assunto, devolvendo a Hipócrates o CRM:

"Algumas pessoas nunca cometem os mesmos erros duas vezes. Descobrem sempre novos erros para cometer."

domingo, 10 de outubro de 2010

Azul

Comecei a chorar tão logo vi as brancas montanhas em contraste com o céu muito azul daquela tarde de fevereiro. Baixávamos suavemente de forma que eu conseguia ver cada detalhe, e assim que o avião fez a curva para alinhar com a pista pude ver o azul oceano ao longe.

Pousamos. Para minha alegria, todos os fingers estavam ocupados. Adoro desembarque na remota, pois posso sentir ainda na pista o vento que me move a alma. Um ônibus vinha para nos buscar e, enquanto isso, ia fotografando os azuis winglets da aeronave. Curvei-me para trás, buscando o melhor ângulo contra o sol, para ter a imagem perfeita do pássaro azul tão Cézanne e ao mesmo tempo tão Santos Dumont. Meu coração batia cada vez mais forte, e aquele vento gostoso foi ficando para trás quando subi no ônibus da companhia, até chegar ao saguão do aeroporto.

Ia calada e encantada, observando os rostos das pessoas que cumpriram aquela etapa. Alguns em conexão, outros em seu destino, como eu. Era interessante olhar cada traço, cada expressão de alegria da expectativa da chegada. Altos, baixos, gordos, magros, olhos redondos, olhos puxados, verdes, negros, azuis. As vozes, mais agudas pela empolgação, se misturavam aos anúncios de outros voos provindos de inúmeras partes. As mãos gesticulavam sem parar, contando os segundos para a travessia da porta de vidro e o abraço do outro lado.

Senti um arrepio delicioso quando encontrei o letreiro escrito "São Paulo" sobre a esteira. Bagagens de todas as cores e todos os tamanhos passavam por mim e eu sorria um tanto abobalhada. Mesmo já tão habituada à rotina  aérea nunca deixei de me encantar com todo o processo de voar, até observar as malas na esteira me fazia feliz. Como havia sido uma das últimas a embarcar, minha bolsa azul saiu entre as primeiras. Peguei-a e coloquei-a sobre o carrinho.

Atravessei o saguão e lá estava ele, a camisa muito azul com que eu o havia presenteado em seu aniversário, o coração pulsando tão forte como o meu. Sorria e se mostrava agitado tão só me via através do vidro fumê da sala de desembarque. Acenava, quase que pulando, trazia nas mãos uma rosa. Não consegui definir muito bem seus olhos, mas pelo que estava vendo, com certeza eles estavam cheios de lágrimas, tão feliz que estava.

Aquela camisa azul me fez divagar em pensamentos no céu que havia acabado de cruzar por ele, tão presente nos cartões-postais que trocamos por todos esses meses que ficamos sem o abraço um do outro. Aquele azul que o tempo todo nos acompanhou estava presente em cada detalhe, em cada verso, em cada linha que escrevemos. Aquele azul estava na voz dele que me telefonava às duas da manhã, sem se importar com fuso horário, para me dizer que me queria.

Azul que estava em cada ponto, cada parágrafo, cada papel. Azul que estava nos aviões que amávamos, nas estradas que seguíamos, no oceano que admirávamos, na música que ouvíamos. Azul que estava na tinta da caneta com que me deixava bilhetinhos da última vez em que nos abraçamos, azul que estava no vestido que eu usava da primeira vez em que o vi.

Azul que estava em cada passo que dávamos, cada rua em que caminhávamos, cada rosto que víamos. Azul que estava em cada fotografia tirada, cada sorriso eternizado, cada lágrima vertida, cada soluço contido. Azul que eu via tão intenso naquela camisa polo, vestindo o peito que me acolhia e os braços que, ali do outro lado do vidro fumê, me estavam estendidos.

Saí empurrando aquele carrinho feito doida e logo passei a porta de vidro. Era tudo um sonho azul que se transformava novamente em realidade. Abraçamo-nos ternamente e nos brindamos com um beijo azul.

sábado, 25 de setembro de 2010

Minh'alma engenheira

Deixem-me com minh'alma engenheira
Aprendi a engenhar antes mesmo de ser mulher
Aprendi a ser mulher depois de muito chorar
Depois de muito escolher e muito penar
Deixem-me com minh'alma engenheira
Aprendi a ser cérebro, pensar e criar
Antes mesmo de saber me pintar
Deixem-me com minh'alma engenheira
Minhas falas cheias de graça
Minhas unhas cheias de graxa
Minhas engrenagens e polias
Deixem-me com minh'alma engenheira
Com todo meu poder e fantasias
Com toda sorte e privilégios
Deixem-me cometer os sacrilégios
Que assim se consideram por eu ter útero e ovários
Deixem-me com minh'alma engenheira
Escolher aquele entre tantos vários
Que valoriza o pensar, o criar
O entender, o sofrer, o querer
Antes mesmo de eu saber me pintar.

Escalada

Foram vales gigantescos e montanhas pontiagudas
Subidas íngremes e o corpo que se vai
Caminhando pela estrada sem sentido
A esmo, subindo e subindo a colina

Em uma agulha ele contempla
Todos os contornos da nação e mais além
Vence os obstáculos do solo
O mato, a neve, as pedras
E sobe com a visão do céu
E das poucas aves que o acompanham

Cai
Arrebenta o joelho na escalada
A dor lhe é insuportável, mas já era previsível
Que se machucasse em uma pedra solta que não soubera reconhecer
Pedras tão parecidas com as rochas já firmes da montanha
O mato lhe dá alergia
Roça-lhe as pernas, os braços
Deixa-lhe sementes nas roupas
E vai ficando menos denso a cada trecho mais íngreme
A neve consome-lhe os pés
Não estava preparado para tamanha frieza com beleza
A alvura que lhe aparecia em volta o encantava
Mas ao mesmo tempo cegava-lhe e o enregelava
Ai, não queira que lhe gangrenem os pés!

Já a montanha de grau cinco
Pede mosquetões, cordas, estribos
Não sabe porque escolheu a face mais difícil
Mas já que estava ali era melhor encará-la
Tamanho rochedo quase intransponível

Ao fim, ao contemplar toda a nação deste ponto,
Abre as asas negras e voa até a boca da montanha vizinha
Mergulhando no vulcão em erupção
A lava consome-lhe as penas, a pena,
A raiva, o ódio
O ócio, o corpo, o coração
E torna ao pó de que da terra foi feito

domingo, 12 de setembro de 2010

César

você é organizado e eu sou bagunceira
você é médico e eu engenheira
você é calado e eu faladeira
você é tímido e eu sou só zoeira
você é colombiano, eu sou brasileira

você é lúcido e eu sou a loucura
você é alto, já eu não tenho altura
você é força e eu sou doçura
você é precisão e eu sou ternura

você é do Verde, eu torço para o Coelho
se lhe dói a garganta, me dói o joelho
meu esmalte incolor você quer vermelho

eu gosto de suco, você coca-cola
sou desastrada, você sabe o que rola
se eu quebro tudo, é você quem cola
se eu não ligo, aí você me enrola

adoro seu jeito, completa o meu
me faz bem, me fascina, você já é meu
meu coração só pede por um carinho seu
assim somos dois e você é meu eu

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

"Couves-flores" do lado de cima

Meu telefone ficou mudo a manhã inteira no escritório. Quando todo mundo saiu para almoçar e eu fiquei sozinha, finalmente ele resolveu tocar. Atendi como de costume, e logo escutei a voz áspera e pouco musical dela.

- Oi, Glaucia. Boa tarde. Você esteve com o Marcelo no fim de semana, não é?

- Sim, estive, por quê?

- Quero falar com ele.

- Mas se você está querendo falar com ele, ligue para ele, ora. Não para mim.

- Não estou conseguindo falar com ele. Imaginei que ele estivesse on-line no MSN com você. Diga-lhe que quero vê-lo.

- Está bem, eu direi. E o quê mais você quer que eu diga?

- Diga-lhe que quero almoçar com ele. Agora. Estou perto da casa dele. Restaurante Santuário.

- Sugestivo nome, ahahaha!

Realmente ela era muito estranha. Chata, eu diria. Não sei como o Marcelo gostava dela, porque ela era ciumenta demais. Para ele, ela tinha uma voz doce, um perfume agradável, usava calcinha lilás, tinha um sorriso lindo. Eu enxergava uma velha curvada, de um hálito horroroso e sem dentes. Não, eu não sou ciumenta, ela que era. Eu sou só amiga dele e ela que ficava me perseguindo, ora me rechaçando porque eu estava perto e ela não podia namorá-lo, ora meio que pedindo ajuda para seduzi-lo mais uma vez. Como boa amiga dele que sou e, por conseguinte, dela também, eu fazia de tudo para agradá-los.

Atendendo, então, mais uma vez ao pedido dela, chamei-o no MSN.

- Marcelo, ela está querendo te ver. Disse que está no Santuário.

- Agora?

- Sim. Agora. Quer almoçar com você.

- Obaaa!

E eu com meu pensamento: ai, Marcelo, lá vai você de novo atrás dessa chata ciumenta! Eu vou lá. Não vou deixá-la brigar com ele de novo. É sempre assim. Ela o chama, diz palavras carinhosas, o seduz, depois faz charminho, briga e o abandona. Por que não o leva de uma vez, caramba? No fim, ele fica todo deprimido, aí me liga e diz que mais uma vez ela o fez de bobo. Desta vez eu não vou deixar. Vou avacalhar o encontro dos dois e colocá-la para correr.

Chegando ao restaurante, lá está ela, na mesa, esperando pelo Marcelo com aqueles olhos de carnívoro voraz. Meu amigo, não vou deixar com que ela brinque com você de novo.

- Boa tarde, mocinha! - disse eu a ela, toda melosa e irônica. - Quer que eu te sirva?

- Não preci...

- Ah, precisa. - interrompendo-a, fui logo pegando um prato e enchendo-o de cebolinha cristal.

- Não como cebola, Glaucia.

- Cebolinha cristal é o máximo. Olhe que lindas azeitonas.

- Porra, Glaucia, não como azeitona! Não tenho dentes e tenho preguiça do caroço!

- Uhum. Olha, couve-flor. Vou colocar aqui em cima, você vai comer "couves-flores" do lado de cima!

- Glaucia, não me sirva. Você é quem vai comer isso. Cadê o Marcelo?

- E eu sei lá dele? Vamos aproveitar a companhia uma da outra enquanto ele não chega. Fique à vontade...

E continuei colocando as coisas mais sem nexo no prato dela. Pimenta malagueta pura, peixe frito, que sei que ela odeia. Nesse ínterim, Marcelo chegou e ficou estático na porta do Santuário, a cara dela de "quem essa maluca pensa que é?" e a minha cara de desafio diante dela. Ele ficou observando-nos durante um bom tempo e, ainda meio assombrado, assentou-se conosco. Calado, escutava atônito as minhas provocações.

- Você passou perfume de túmulo hoje, queriiidaa?

Nossa, eu estava terrivelmente irônica. Perguntei a ela se ela não tinha o que fazer, se não era melhor ir seduzir o Hugo Chávez. Quem sabe, se ela o levasse, o mundo não teria um pouco mais de paz. Mas não, ela queria o Marcelo. O meu amigo. Tanta gente menos útil no mundo e ela querendo levá-lo na conversa. E eu não ia deixar.

Por fim, provoquei-a ainda mais e me ofereci para pagar a conta. Enquanto ia ao caixa, vi que ela nem moveu o garfo do lugar. É, realmente ela não come, por isso está caquética daquele jeito.

Saímos do restaurante e descemos a avenida, os três juntos, conversando, e eu a cada minuto mais chata com ela, tentando dissuadi-la da ideia de levar o Marcelo embora. Ainda tentei emendar uma piada, mas não deu tempo. Os olhos dela se converteram em duas bolas de fogo, que me miravam com ódio e dor.

- Ciumenta é a mãe, Glaucia!

É, realmente a dona Morte não estava para brincadeira. Dizendo isso, me empurrou com a gadanha na frente de um vinte-e-dois-qualquer-coisa.

domingo, 22 de agosto de 2010

A morte da Gal

Dizem que a Gal morreu no Amazonas.

Um índio chegou para ela e disse:

- Mim, índio.

Ela respondeu:

- Mim, Gal.

Aí ele a comeu.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Assim que se recebe

A sede de meu desejo de mulher
Sacias com teu chegar sem pedido
De licença sem bater à porta
Toda de sorte que vieste aqui parar
Para oferecer-me o que nunca tive
Teu fogo e tua pegada me fascinam
Elevam essa carícia ao amor
Dela nascem o perdão e a exatidão
Da ausência de pudores e moralidades
Quando tocas minha pele com teu ar
Crio todas as expectativas de cria
Deleito-me com teu leite teu mel
Chamo tua atenção com todo meu pecado
Proibido alucina minha lucidez
Toca-me a superfície da alma
Com um leve beijo de tua boca

* Baseado no poema "Assim que se faz", de Guilherme Peruchi, disponível em http://bemvindoaoprazer.blogspot.com/2010/08/assim-que-se-faz.html.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Conquista

Estou aqui sentada na mesa da universidade em que estudo aguardando para iniciar a prova do vestibular. Calma, isso é somente uma mera questão burocrática a fim de forçar a instituição a aceitar minha reopção de curso, mas estou confiante e logo isso se resolve. Enquanto aguardo fico de cabeça baixa, quase dormindo, e pensando na morte da bezerra.

Então me autorizam a começar a prova. Sempre gostei de fazer a redação primeiro, porque estou de cabeça fresca e aí me saem as melhores frases. Aquelas assim, para coroar o texto. Li a proposta, o tema era qualidade de vida, com uma porção de fatores que levam a uma boa existência, como alimentação saudável, atividade física, amigos, amor, fazer as coisas sem pressa... e nessa divagação bovino-tanatológica me ocorreu algo fantástico: qualidade de vida é conquista.

Sim, aquela coisa gostosa que começa ainda lá na sua infância quando você consegue comer sozinho e aprende a fazer cocô no peniquinho; depois quando consegue descer os degraus da escada; e quando você tem seis anos e discute com seus tios que já é grande e não precisa que lhe falem como a um bebê. Isso tudo é conquista. Conquista de maturação neurológica, conquista de respeito. Eu tenho seis anos, mas não sou um neném. Converse comigo direito!

Aí vem a conquista das letras. Olha, eu sou inteligente! Já sei ler, já sei escrever e não faço outra coisa senão escrever com giz meu nome pelas paredes do prédio afora. O síndico quase matou a minha mãe, mas ela, mesmo brigando comigo, ficou orgulhosíssima pela caligrafia redondinha que saiu. Conquistei o mundo letrado. Sou incrível.

Na adolescência, vem a conquista dos gatos e gatas do momento. E é aquela história toda que a gente já conhece: chegar junto, beijar, ficar, namorar, transar, descobrir. Não é a conquista da pessoa amada ou querida, é a conquista do poder fazer cada coisa.

Vêm o vestibular, a universidade, a formatura, a pós, o casamento, os amigos que vão e vêm, os pais e os avós que se vão, as separações e os divórcios. Tudo é conquista. Espera, divórcio é conquista? Depende, se for de um parceiro insuportável, é a conquista da liberdade.

Mas note que tudo é a seu tempo. Coisas de criança têm seu espaço em épocas de criança. De adolescente idem, de adultos mais ainda. Está certo que alguns atropelam fases: há aqueles que têm filhos ainda na adolescência, aqueles que se casam e se separam cedo demais, aqueles que caem na boemia aos quarenta ainda achando que têm vinte e cinco. Há aqueles que nunca se casam, que nunca saem da adolescência; há os que morrem jovens demais antes de terem cumprido todo o rito preparado.

Ah, mas se o "cronograma" for cumprido à risca, a qualidade de vida está exatamente aí. Viver cada coisa a seu tempo. Conquistar seu espaço, seu caminho, ter coragem para mudar o que não está bom. Perceber a tempo que certas realizações são verdadeiros elefantes brancos: lindos, porém o que fazer com eles?

Então você retoma e faz tudo de novo. Começa do zero. Conquista tudo outra vez e melhor. E maior. E cada vez mais alto. E uma coisa de cada vez.

Qualidade de vida é isso. É fazer o que der na telha, sem passar por cima de ninguém. É conquista. Sem pressa.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O dia depois da minha morte

por Erika Paola Brú Vélez

Este texto é um conto da jornalista colombiana Erika Paola Brú Vélez. Escrito juntamente com seu irmão, com ele participou de um concurso em Cartagena, sua cidade natal, no qual obteve o primeiro lugar dentre muitos escritores. É baseado em uma história real, de um amigo muito próximo de sua família, Andrés Mauricio Trucco Orta.

Foi traduzido do original em Espanhol, que se encontra em http://erikapao.blogspot.com/. É o Mingau promovendo a integração literária da América Latina!


* * * * *

Ainda não acredito. Por quê, meu Deus, por quê? Me pergunto a cada vez enquanto a alma se me estraçalha ao ver minha mãe abraçada a um caixão, rodeado de uma porção de coroas, muitas pessoas naquela salinha dando a impressão de que não há espaço para tanta gente, todas chorando e lamentando a morte da pessoa que está ali no ataúde, parecendo felizmente adormecido mas que sabem que jamais despertará desse sono profundo. E eu ainda não consigo acreditar. É um pesadelo? Se é assim, quero despertar logo de uma vez, mas como faço? Ninguém pode me ajudar. Tenho medo de me aproximar do caixão porque é uma sensação terrível, pensei que isso só acontecesse em filmes, mas está acontecendo comigo.

Não pensem que é bonito ver seu próprio funeral. Este jovem que ali jaz, provocando uma tristeza enorme em quem o conhecia, sou eu: André Felipe Lopes Moreno. Tenho, ou tinha, Deus, como é difícil explicar!, quinze anos de idade e por um estranho golpe do destino hoje estou aqui, vendo o meu velório, sentindo uma grande impotência em ver a minha mãe desesperada, chorando desconsolada, perguntando-me por quê Deus fez isso com ela. Não sabes, minha mãe, o quanto eu queria abraçar-te, dizer-te “mamãe, não se preocupe, eu estou aqui contigo! Ainda não fui e não irei nunca”. Mas não posso, ela não me ouve, não me vê, talvez me sinta, mas não como eu queria que sentisse.

Deveria ter aproveitado enquanto era vivo para dizer tantas coisas, tantas que eu queria que ela soubesse, mas agora é muito tarde. Talvez porque eu acreditasse que era jovem demais para morrer, isso de morrer era coisa de gente velha, eu teria uma longa e feliz vida, era assim que pensava. Hoje Deus me ensinou e me fez ver o quanto eu estava equivocado. Só Ele decide quando e porque devemos partir deste mundo.

Caminho pela salinha, de um lado para o outro, desesperado, buscando respostas a perguntas que eu ainda nem sequer havia formulado. Quero estar vivo! Repito isso várias vezes esperando que Deus me faça um milagre. Tento acariciar as flores das coroas que muitos enviaram, mas não posso, e muito menos sentir o cheiro tão lúgubre que delas emana, como quando morreu meu avô e eu soube pela primeira vez o que era estar em um velório e em um enterro. Agora o estou vivendo por mim mesmo, sei que meu avô esteve todo o tempo conosco, assim como agora estou com todos aqui na salinha da funerária.

Creio que nunca vou superar isso de minha morte. Justo agora que estava vivendo meu melhores momentos, me sentia na plenitude da vida. Malditos delinquentes! Mil vezes malditos! Me arrancaram o mais precioso que tinha: minha própria vida. Às vezes me pergunto se estava no lugar errado e na hora errada, ou se definitivamente, como dizem as pessoas, era minha hora. Não entendo nem porque fiquei no meio do fogo cruzado: ladrões de banco contra a polícia. Um acontecimento cotidiano nesta cidade tão sem segurança. Mas, como todo jovem, você nunca espera que isso que aparece nos jornais aconteça a você. Claro, isso acontece lá longe, em grandes capitais, você pensa assim, muitas vezes ignorando que o perigo está mais perto do que o que você imagina.

Ontem saí de casa para comprar picolés e esperar meu pai, que voltaria de uma viagem mais à noitinha. Meu velho agora está ali sentado sem pronunciar palavra, mas se nota em seu olhar perdido uma dor imensa e profunda. Como me dói vê-lo assim também! Continuando com a trágica história do fim da minha maravilhosa vida, quando estava atravessando a rua pude ver uma caminhonete quatro portas que vinha em alta velocidade e percebi que um dos ocupantes saía pela janela com uma enorme metralhadora, apontando para o carro de trás, que era nada mais nada menos que a polícia. Imediatamente começaram os disparos. Policiais e bandidos em guerra no meio da rua, sem se importarem com quem estava em seu redor. Só me lembro de ter sentido um impacto profundo no coração e tudo escureceu. Queria abrir os olhos, me levantar, mas não podia. Ao longe ouvia-se uma ambulância, podia sentir a presença de muita gente em volta de mim, gritando desesperados, algumas mulheres chorando.

- Salvem-no! Salvem-no! - ouvi que gritava uma idosa desesperada. - Ele é tão novinho! - diziam outros.

Será que eu estou ficando doido? Era tão eminente e evidente assim a minha morte? Senti quando me puseram na ambulância e o médico que me assistia apertava forte a minha mão e dizia:

- Resista, mocinho, você é um grande homem, vamos, resista, você é forte! - mas eu sentia que as minhas forças se esvaíam pouco a pouco, e já quase não escutava o que os outros diziam.

Chegamos ao hospital. Imediatamente me levaram para a sala de cirurgia para extrair a bala, mas o mal já estava consumado. A bala penetrou profundamente o coração, eu já não tinha chances. Meus sinais vitais ainda estavam presentes pela minha juventude, mas desde há muito tempo eu já havia deixado de pertencer a este mundo.

Senti que me tornava leve, já não sentia o peso do corpo e foi quando pude me ver pela primeira vez fora dele é que notei o que fui em massa corporal. Tentei voltar ao corpo, como nos filmes, tão ingênuo eu acreditando que assim poderia reviver, mas nada, o esforço foi em vão.

Pude notar uma lágrima escapando dos olhos do médico enquanto retirava as cânulas e se rendia diante deste duelo contra a morte.

Eu o segui, queria ver a quem ele daria a má notícia. Na sala de espera estavam minha mãe tão linda, com um terço nas mãos e o livro de orações que nunca a desampara; minha irmã, muito pálida e com um lenço na mão, talvez preparada para o pior; uma tia; a mulher que foi minha babá e uma vizinha, todas esperando que o médico dissesse “nós o salvamos”!

O momento seguinte foi algo aterrador. Uma experiência que, de tão horrível, só de lembrar eu morro de novo. O médico pronunciou as palavras que elas não queriam ouvir. “Lamento, fizemos todo o possível, mas o garoto não resistiu. A bala lhe penetrou tão profundamente o coração que qualquer possibilidade de se salvar era muito remota. De verdade, sinto muito, ele ainda era muito jovem para morrer, mas a vida é assim!”

Pobre da minha mãezinha, não resistindo a tão impactante notícia se desvaneceu no chão frio daquele hospital. Tiveram que socorrê-la imediatamente com calmantes e outros medicamentos. Minha irmã, um pouco mais tranquila, tentava ser forte, mas a dor lhe era tão lancinante que até as enfermeiras se comoveram e choraram ao seu lado, apoiando-a. As demais, sem sair de seu assombro, choravam e choravam desconsoladamente.

Minha mãe pediu na funerária que a deixassem me vestir pela última vez e obviamente aceitaram. Chegou com uma mochila onde estava a minha roupa. Escolheu a camisa de linho branca de que eu tanto gostava, com a qual ia aos aniversários de quinze anos das minhas amigas, e a calça bege que me foi dada de presente por papai quando eu completei quinze anos. “Como fico bonito!”, pensei, uma pena que para tão mau momento.

Enquanto me vestia, com a mesma paciência de quando eu era um bebê ou creio que até mais, porque agora eu estava duro e frio e não mais frágil e quentinho como um recém-nascido, ia me dizendo muitas coisas que ela me dizia quando estava vivo, mas a verdade é que poucas vezes prestei atenção e nunca dei tanto valor como agora.

“Lembro-me do dia em que me disseram que eu estava grávida de você” - começou. “Sua irmãzinha tinha cinco anos de idade e queria um irmãozinho. E com seu pai pensamos em dar você de de presente a ela. Assim que descobri que o estava esperando, fiquei tão emocionada!” - dizia, enquanto colocava meu braço na camisa. “Sua irmã pulava de felicidade e toda a minha gravidez foi muito festejada porque eu esperava o homenzinho da família. E o que dizer quando você nasceu? No hospital decoraram meu quatro com bolas azuis e serpentinas, os presentes já não cabiam no quarto. Você era tão pequeno e indefeso, mas sempre lindo, sempre foi e serás lindo, inclusive agora, não importa que esteja frio e eu te vestindo para a morte, mas preciso que as pessoas te vejam pela última vez, que te vejam divino, por isto escolhi esta roupa de que você tanto gostava e com ela enlouquecia as meninas nas festas”.

Minha mãe, tão linda. Ali estava, vestindo seu “bebê”, como sempre me dizia. Falando comigo como se eu ainda estivesse vivo, como se soubesse que eu a estava ouvindo. E sim, mãe, é verdade que estou te ouvindo, e desta vez com mais juízo do que nunca.

“Filho meu, meu bebê! Não sei que mal eu fiz a Deus para que Ele me desse esse castigo tão horrível, de levar você do meu lado para nunca mais voltar a te ver.” - dizia agora sem poder conter o choro compulsivo. - “Quero que você saiba que sempre, sempre te levarei no coração, sempre será parte da minha vida, mesmo que não esteja presente de corpo, mas sua alma está comigo. Eu amo você desde antes de saber que você existiria, sonhei com você quando era adolescente e me imaginava quando fosse mãe. Cuidei de você como meu maior tesouro durante estes quinze anos, que me parecem tão poucos. Sei que dizem que os filhos são emprestados, mas esperava que Deus lhe emprestasse para mim por muitos anos ainda, que você trabalhasse, que me desse netinhos, que pudesse te ver homem feito, de caráter.

Mas se Deus assim o quis, não continuarei questionando Sua vontade, como boa católica e cristã que sou, e me resignarei com a alma destroçada a aceitar a sua partida. Talvez Deus necessitasse de um anjinho a mais para seu exército e levou o mais lindo de todos os que estavam na terra.”

E, dizendo isso, terminou de me colocar os sapatos e me jogou perfume por todo o corpo, não sem antes me dar um abraço bem apertado e um último beijo que eu não pude nem sentir.

E aqui estamos. Na salinha do funeral. Imagino o quanto deve ter sido terrível a notícia para meu pai quando chegou da viagem à noite. Não era justo tê-lo recebido com essa notícia. Vou sentir saudades das suas conversas, suas piadas pesadas, as partidas de xadrez, os jogos de futebol e basquete, as idas ao estádio e aos concertos, nossos passeios de bicicleta, quando me explicava matemática e física, seu amor e compreensão incondicionais. Sentirei falta de tantas coisas do meu velho! Espero que Deus o reanime a fazer isso tudo levando com ele um pouco de mim.

Minha irmã. Elisa, linda de todo jeito, está sem maquiagem e vestida de preto, essa cor que ela tanto odeia porque diz que é muito triste. Não para de chorar, vieram suas amigas para consolá-la. Leva nas mãos um porta-retrato com nossa foto, uma que tiramos semana passada em um estúdio conhecido. Sei que agora também estará blasfemando por Deus lhe haver tirado seu braço-direito, seu companheiro de aventuras, seu confidente, seu consentido. Agora tampouco terá com quem brigar pelo último pedaço da pizza, para ver quem usa primeiro o computador, quem fica com o controle remoto da televisão, quem lava os pratos. Vou sentir muita saudade, mas estarei no Céu cuidando dela e espero que me dê lindos sobrinhos e tomara que lhe ocorra pôr em um o nome do tio. Seria uma linda homenagem para mim.

Sabem, me dei conta de uma coisa. Nos funerais sempre aparecem pessoas que nunca conheceram o morto. Vi gente que nunca vi na vida. Devem ser amigos dos meus pais e da minha família.

Tampouco pensei que jamais viesse tanta gente ao meu sepultamento. Isto me fez arrepiar a pele, desculpe, qual pele? Já havia até esquecido que não a tenho mais.

Aí estão todos os meus amigos do colégio, como sentirei falta deles! Quem dera pudesse dizer a eles o quanto os amo, mesmo que brigasse com alguns deles. Estão meus amigos do bairro, do time de futebol, do curso de inglês. Está também Susaninha, a menina a quem eu ia pedir para namorar esta semana, que raiva! Apesar de estar com os olhos inchados de tanto chorar continua sendo tão linda, inocente, espero que encontre um bom rapaz que a ame como eu e a possa fazer feliz como eu queria ter feito.

Já chegou o padre. É um velhinho encurvado, assim imagino que fará tudo rápido e que logo vai embora. Todos rezam pelo descanso eterno de minh'alma. Ainda não posso acreditar nesse momento. Minha irmã lê a oração final. Vamos para o cemitério.

A caravana de carros é interminável. As pessoas na rua ficam abismadas com o acontecimento e muitos murmuram entre eles: “Deve ser alguém famoso ou muito rico”. Pois a verdade é que não era nenhuma das duas opções. Famoso entre meus amigos talvez e a riqueza que eu possuía era fruto do trabalho humilde de meu pai, e não é muita, mas o suficiente para se viver decentemente.

Chegamos ao cemitério. O caminho foi curto. Já nem sei o que sinto. Quando eu receber uma pá de terra em cima, já ninguém se lembrará de mim, ou talvez muito de vez em quando.

Minha mãe fica de um lado do caixão, o acaricia pela última vez. Meu pai e minha irmã a abraçam fortemente. Leem uma curta oração e o sacerdote dá a ordem ao coveiro para iniciar os trabalhos. Neste momento eu quis gritar. Quis dizer a todos que estou aqui. Que os amo muito. Deus, quantas coisas deixei de dizer ou fazer! Se as pessoas soubessem disso, seguramente aproveitariam cada instante de suas vidas para fazerem saber aos demais o quão importante são uns para os outros, pediriam-se desculpas ou quem sabe não se ofendessem tanto, nunca deixariam para amanhã o que poderiam fazer hoje, fossem mais conscientes da realidade em que vivem e que não possam ignorá-la pensando que nunca serão vítimas deste ou aquele problema.

Se as pessoas soubessem que estar morto não é tão bom assim, viveriam a plenitude a cada segundo, cada hora, cada dia, cada semana, cada mês, cada ano, cada instante. Se eu pudesse dizer isso a eles, talvez me escutassem por um momento.

Continua a terra a cair sobre mim ou, bem, o que se supõe que era eu. Esse corpo, agora sem vida. Lembrando-me um pouco de Platão, sobre aquilo da alma e do corpo, e ele tem toda razão, o corpo não serve de nada se não tem uma alma que lhe dê vida, que o impulsione e motive. E meu corpo já ficou sem alma e sem vida.

Do céu, que é para lá que acredito que devo ir, cuidarei da minha família e de todas as pessoas a quem quero bem, para que não suceda-lhes nada de mal. Tomara que Deus me permita tornar-me um Anjo da Guarda para estar mais perto dos que amo aqui na terra. Será difícil não continuar vivendo a minha mesma vida agora. Me pergunto tantas coisas! Agora o que acontecerá, para onde irei, do que vou viver, será que continuarei a sentir fome, sono, sede... Deus deverá me responder e me explicar porque permitiu que essa bala me atingisse, se acaso foi isso que Ele determinou para mim.

Já quase não se vê o caixão. Um pouco mais de terra e ficarei alguns metros sepultado, voltando para o Deus de onde viemos todos, para o pó.

Minha mãe está um pouco mais calma, creio que porque já não existam mais lágrimas em seus olhos porque já chorara todas. Meu pai e minha irmã apenas olham tristes, e muito tristes acomodam as as coroas sobre o montinho de terra que se formou sobre mim. Elisa pediu para escrever meu epitáfio, que ficará sobre a lápide quando se cumprir o prazo suficiente para instalá-la.

As pessoas pouco a pouco começam a ir embora, despedindo-se dos meus pais, que ainda não saem dali. Minha mãe ajeita perfeitamente todas as flores que ali se encontram. - “O túmulo do meu bebê tem que ser o mais lindo” - disse, em meio à sua tristeza.

O céu está nublado e começam a cair as primeiras gotas de chuva. Agora sim, meus pais e minha irmã decidem irem juntos para casa.

E eu continuo aqui, aguardando a ordem para ir a não sei onde.

Começo a sentir que estou fraco novamente. Posso ver uma luz que se interpõe em meu caminho e me convida a segui-la. É o momento da verdade, penso. Agora acho que vou ver Deus. Começo a caminhar e noto o trajeto repleto das mais lindas flores. Há uma grande variedade delas, todas brilhantes. Sinto que estou voando.

E vou. Agora serei um anjo do Senhor. Já não me dói ser humano. Estou aprendendo a gostar da minha nova condição de vida. Não seguirei mais lamentando mais por ter deixado a terra, pois todos algum dia terão que fazê-lo, o caso é que alguns se adiantam no caminho.

Entro no paraíso. Isto não posso contar. Deus me disse que é um segredo que somente poderão conhecer quando estiverem com Ele. Só posso dizer que é maravilhoso. O paraíso existe, de verdade, eu comprovei. Nos vemos por lá.

sábado, 24 de julho de 2010

Ventos de agosto

Os ventos de agosto começam a visitar minha varanda ainda no final de julho.

Passam carregando folhas secas, restos de pipas, papéis, lixo.

Passam impulsionando os teco-tecos na clássica aprendizagem de pilotagem do sábado pela manhã.

Passam levando o lençol branco coarando ao sol, tão vivo no céu de brigadeiro de agora, repleto de parapentes provindos da serra.

Passam levando o ladrar dos cães, o chorar dos filhotes recém-desmamados.

Passam levando risadas de criança, corridas de pais atrás das crianças, impulsos nos balanços do parque.

Passam levando palavras, conversas fiadas, a música do violino de Florentino Ariza aos ouvidos adolescentes de Fermina Daza.

Os ventos de agosto passam levando abraços e bolinhos de chuva de avó.

Passam levando beijos, saudade, abraços de filho, de pai, de mãe, de marido, de esposa.

Passam levando a falta de umidade do ar, a secura do tempo, a maldade do relógio.

Passam levando a lágrima, a dor, a covardia, a impureza, a ira.

E quem diz que no cerrado não neva é porque não conhece o branco das ceibas a cobrir os caminhos do recomeço e da serenidade da primavera de setembro.

domingo, 18 de julho de 2010

Prosa moderna II

Amiga 1: Hoje acordei cheia de alegria!
Amiga 2: Eu tb! Amanheci toda empolada.

Cinco minutos.

Amiga 2: Agora q percebi q vc escreveu "alegria" e não "alergia". Maldita dislexia.
Amiga 1: kkkkkkkkkkkkkk

Amiga 2 cola a conversa para Amiga 3.

Cinco minutos.

Amiga 3: Nossa, agora q percebi q vc escreveu "empolada" e não "empolgada"!!

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Como detonar uma noite em sete passos

Definitivamente assinei embaixo de uma coisa que sempre preguei: homem de balada não presta. Nunca tinha ficado com um e, após trinta e dois anos, dois casamentos e um período de solidão, resolvi experimentar para ver qual era. Antes tivesse ficado em casa cuidando do meu pai.

Cheguei à danceteria sozinha, pouco depois da meia-noite. Estava ainda tímida, dançando apenas agitando de leve o corpo, sem pretensões. Não gosto de aparecer, apesar de adorar dançar. Com quarenta minutos na pista, aproximou-se de mim um rapaz muito bonito, musculoso, cavanhaque... Logo eu, que tenho fetiche com barba! Ah, achei que estava arrasando. Realmente eu deveria estar, para ter atraído o tipo.

Sou mesmo muito tímida, exatamente por isso escolhi uma profissão na qual eu realmente não precisasse aparecer em lugar algum. Sou cronista de um jornal em Manaus, meu pai mora em Belo Horizonte e havia ido visitá-lo. Para essas viagens, sempre tenho um chip de celular da capital mineira para o caso de meu pai precisar falar comigo. Bendita hora que só uso esse chip por lá, porque assim desligo depois e não tenho que atender ninguém ao meu real celular de Manaus. Ao melhor estilo cafajeste, eu não assumo. Eu sumo.

Então, o moço perguntou se eu gostaria de dançar - logo o que eu detesto e faço questão de não aprender, que é o forró. Aceitei, pois não tinha nada melhor para fazer naquele momento, e então começamos a dançar e conversar. Ele era fisioterapeuta e tinha trinta e seis anos. Tinha um bom papo, uma voz bonita, mãos macias. Beijou-me, e naquele beijo ficamos cerca de dois minutos.

De repente, alguém joga cerveja para cima e os respingos atingem o meu braço. Nem liguei, limpei na roupa mesmo, e o rapaz ficou maluco. Cutucou o amigo com quem estava e ficou procurando quem poderia ter sido o autor da brincadeira. Abri um olho enorme, imaginando o começo de uma confusão. Não chegou a ocorrer, porque brinquei com a situação e disse que aquilo era coisa de argentino, que não suporta brasileiro se divertindo, era para deixar para lá. Mineirinho esquentado aquele! Característica número um: brigão.

Beijo vai, beijo vem, uma dançarina de rumba subiu ao palco. Eu estava abraçada com o rapaz, e a dançarina me puxou para cima do palco, e puxou outro rapaz que estava com outra menina e nos fez dançar juntos. Até aí tudo bem. Terminada a dança, agradeci ao rapaz e fiz descer por um lado do palco e ele pelo outro. O mineirinho esquentado foi atrás do rapaz com quem dancei só para dizer "vaza, véi!" com a articulação mais precisa do mundo. Característica número dois: ciumento.

Continuamos a conversar. Ele me pergunta como é a questão de namorados, ficantes e afins em Manaus. Respondi que havia sido casada duas vezes. Ele vai e me solta esta: "Safada você, hein!" Ao que redargui: "Safados foram os dois que me largaram." Ele percebeu que engelhei a cara e logo me puxou para perto, antes que eu mudasse de ideia. Característica número três: babaca.

Aí eu já não estava mais tão à vontade. Ainda bem que começou a tocar frevo e eu saí como louca pela pista, dançando e pulando. Ele achou graça, pois nunca tinha visto ninguém dançando frevo assim de perto, foi me perguntando onde tinha aprendido a dançar, como era minha vida social normalmente. Respondi que aprendi nos vários locais que frequentei e em que morei. Inclusive que tinha me batido uma saudade danada da El Huevo, de Santiago, onde toca música de tudo quanto é jeito. Perguntei se ele já havia ido a Santiago, ele disse que não, que só conhecia a Europa e que não era muito afeito à América do Sul. Característica número quatro: arrogante.

Ao som de I will survive saí rodando pela pista. Tive que dar uma de doida - eu sou tímida e não tinha bebido! A sorrir, ele ficou me observando encostado num pilar do ambiente, com os braços cruzados e aquele "olhar 43". Eu não sabia se ria ou se chorava. Ele me puxou para perto e perguntou: "você bebeu todas antes de vir para cá, né?" Respondi que estava dirigindo e este tipo de loucura eu não costumo cometer. Característica número cinco: fala do que não sabe.

Ele não estava achando interessante o fato de eu querer ter ido ali só para dançar. A todo instante me puxava para perto. Acabou que já que eu estava ali mesmo, o beijei de novo só para não ter que ouvir mais besteiras. Qual o quê! Ele me pergunta quando volto a Manaus, eu digo que dentro de vinte e quatro horas; ele vai e me larga esta no ouvido: "adoraria transar com você antes de você ir embora." E eu com aquela cara de "uotarrél" ou, em português claro e simples, "cuméquié?", fingi que não ouvi e ele repetiu com outras palavras: "adoraria fazer amor com você antes de você ir embora." Pronto. Matou a noite. E ainda emenda: "tenho chance?" Sorri e fui apenas educada: "tecnicamente." Característica número seis: apressadinho.

Já sob o embalo do samba, trocamos telefone (o chip de Belo Horizonte, é óbvio) e ele passa as pontas dos dedos pelo meu rosto, fazendo como uma letra S. "É minha marca registrada, nenhum homem vai fazer isto com você." Repetiu o gesto sobre a minha boca com a ponta do dedo indicador. Característica número sete: idiota. Ou seria infantil?

Ele foi embora, insistindo para que eu fosse com ele, mas fiquei por lá mesmo, para dançar mais um pouco. Lembram-se da característica número dois? Pois é, a pergunta fatal: "veja se não vai me trair aí dentro, hein!" Sim, pode deixar. Não vou. Até porque é só agora que eu vou conseguir dançar sem você ficar me pegando. Coisa mais chata!

"E aí, quando você volta a Belo Horizonte?" - e eu, mais que depressa: "até pensei em vir morar aqui, mas agora estou com a certeza absoluta de que devo voltar é para Santiago." Se ele não entendeu esta, paciência. Eu ali falando que era melhor estar em outro país que perto dele e ainda assim ele não entendeu! Característica número oito? Sim. Eram sete passos, mas este posso considerar o oitavo: burro.

No dia seguinte, lá está meu telefone tocando. Era ele. Se eu atendi? Desliguei o telefone, retirei o chip e entrei na sala de embarque quando a voz de Iris Lettieri anunciou meu voo de volta com conexão em Brasília.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Prosa moderna

Caio diz:

- Oi, lindinha! Dançou muito ontem?

Mariana diz:

- dancei sim

Caio diz:

- Hmmmm... legal. Podemos marcar de novo com a turma, que acha?

Mariana diz:

- claro sem problema

Caio diz:

- Mari, você tá com algum problema?

Mariana diz:

- naum so to vendo umas coisas aqui

Caio diz:

- Para quem dançou tanto ontem... estou te achando esquisita.

Mariana diz:

- tou naum eh soh saudade

Caio diz:

- De quem?

Mariana diz:

- de vc, do seu geito

Caio diz:

- Ah, Vinícius. Chega. Já sei que é você.

Mariana diz:

- q vinicius? ele nem ta aqui

Caio diz:

- Vinícius, a Mariana jamais escreveria JEITO com G!!!

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Sou louco por você

Havia uns quarenta minutos que eu estava dançando freneticamente depois de umas boas doses de vodca com energético. Aquela brasileirinha não parava de olhar para mim. Chamei-a para perto, dançamos muito e nos beijamos ardentemente. O mais interessante é que eu, estrangeiro, sambava melhor que ela. Ela perguntou:

- Você não acha que nasceu no país errado, não?

- Nasci no país certo... só atravessei a América do Sul para vir te buscar.

Ela explodiu na gargalhada. Beijou-me mais uma vez e saiu da pista.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Camaleão

escondo-me entre a folhagem
verde comum usual e normal
saio correndo quando sinto perigo
de longe somente observo

mimetizado permaneço parado
viro cor de flor
cor de horror
cor de amor
cor de qualquer cor
volto quando já passou

arisco sou

puseram-me um espelho à frente
fiquei branco
não vi que era assim
pontas
dedos
curvas
entalhes
pele
casca

não gostei do que vi
saí correndo de novo

terça-feira, 1 de junho de 2010

Hoje me dei uma rosa


"Toda mulher gosta de rosas e rosas e rosas
Acompanhadas de um bilhete me deixam nervosa
Toda mulher gosta de rosas e rosas e rosas
Muitas vezes são vermelhas, mas sempre são rosas"

(Ana Carolina/Totonho Villeroy)

Outro dia enviaram-me de novo aquele famoso e-mail da mulher que recebe rosas e não é nenhum dia especial. Ela recebeu porque apanhou tanto do marido que morreu. Estou, na realidade, farta de receber essas correntes "pela vida": esta mulher que morre pela violência doméstica; aquela moça cuja mãe falou para não beber e ela só tomou refrigerante e, mesmo assim, um bêbado bateu no carro dela e ela morreu; as Nizildinhas da vida, cujo tratamento de câncer na rebimboca da parafuseta do ângulo pontoencefaloduodenal depende de você repassar a corrente para trezentas mil pessoas... As causas são nobres, mas a consciência é minha, e dá preguiça entupir a caixa postal alheia com bobagens.

Agora vêm aqueles críticos chatos e com o coração cheio de amor para dar e dizem "nossa, que cronista mais insensível!". Podem dizer à vontade. Não sou insensível, sou prática. Depois de anos de internet, certamente sei diferenciar os tipos de mensagem que recebo, e seleciono-as com muito critério antes de repassar, ainda mais se estiverem falando de violência, doenças e toda sorte de coisas ruins.

Voltando à mulher que recebeu rosas. Desta vez esta mulher sou eu. Hoje fui eu que recebi uma rosa. De mim mesma. Almocei no Mercado Central, nos botecos que avivam Belo Horizonte, em meio aos pássaros, flores, cestos, empadas e cachaça, ouvindo ao longe a sinfonia do trânsito caótico da rua Curitiba.

Placidamente tomei uma dose de cachaça que virei num copo de limonada suíça. Eu estava adorando a minha companhia. Conversava com meus pensamentos e ria das ideias que me vinham à cabeça, inclusive a desta crônica. Saí de casa linda, usando saia, meia-calça preta e salto alto. Usei minha melhor maquiagem, caprichei na produção. Comprei um vestido lindo para usar num evento mais tarde. Ah, os brincos que comprei também são maravilhosos. Tudo isso para quem? Para mim. Eu mereço. E enquanto ainda aproveitava minha própria companhia e saboreava minha limonada alcoólica, me desliguei completamente dos problemas do trabalho. Eu estava adorando estar ali para mim mesma, dando gosto de me olhar ao espelho. Mulher que recebe rosas pela morte? Sou uma que celebra a vida.

Levantei da mesa, paguei e fui andando devagar pelos corredores do Mercado. Parei em uma floricultura e comprei uma rosa. Trouxe para o escritório e todos ficaram me perguntando de quem a ganhei. Respondi, sorrindo: "de mim mesma". Não sou ruim ou insensível por não pensar nos outros, muito menos os das correntes cibernéticas, e gostar bastante de mim.

Hoje, cantando, eu me dei uma rosa. Estou celebrando a vida.

domingo, 30 de maio de 2010

Contratempos alimentares II

Sujeito muito do prepotente entra no restaurante após um evento combinado com a direção deste e pede uma salada que não há no cardápio.

- Mas não é possível! Esta Belo Horizonte é triste! Para qualquer lado que você vá é só carne, carne, carne!!!

A paciente (e irônica) garçonete responde:

- O senhor me desculpe, porém essas coisas deveriam ter sido comunicadas à organização do evento, de forma que pudéssemos adaptar o nosso cardápio a pessoas com o paladar diferenciado como o do senhor.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Bonsai

Ele costumava tomar banho e passar perfume antes de dormir. Dizia que nunca se sabe a quem encontraremos nos nossos sonhos. E foi em vários destes que se perdeu na imagem da mulher que idealizou: bonita, inteligente, simpática, agradável, amiga e, principalmente, independente.

Um dia, ela deixou de ser parte do cotidiano do sono e virou realidade. Ela estava ali, a menos de dez metros; havia acabado de limpar o escritório, trazia nas mãos livros, papéis, calculadoras e um bonsai. As unhas lilás, anéis bonitos, um sorriso encantador. Ela estava ali, o que o deixou mudo e pensando "é esta!".

Ele era diferente, ela só não sabia por quê. E ela também era diferente de tudo o que ele havia conhecido - o bonsai! Ele nunca havia visto ninguém entrar com um bonsai num bar! Conversaram uma boa parte do tempo em que ficaram próximos naquele local. Ela, de certa forma, também ficou paralisada ante a delicadeza daquele homem. Mas ela teve que ir embora. Despediu-se sem dizer onde morava, o que o deixou ainda mais intrigado e encantado.

O tempo passou e os dois se reencontraram. Beijaram-se, amaram-se. Tinham tudo a ver: o trabalho, o conhecimento, a alegria, a vontade de viver. Para onde iam, estavam sempre juntos. Houve convite oficial. "Quer ser a minha namorada? De andar de mãozinha dada, de fazer tudo junto, de compartilhar a vida comigo?" Houve o aceite oficial, houve a apresentação mútua aos círculos de amigos.

De repente, ele sentiu um vazio no peito e, sem se dar conta, começou a ser grosseiro com ela. Olhava o nome dela no visor do telefone e não tinha vontade de atender. Do outro lado da cidade, ela se sentia rejeitada e se perguntando o que havia feito. A resposta? Nada. O peito vazio era o dele, não o dela.

Finalmente ele disse o que pensava. Não estava pronto para relacionar-se, estava com saudade da vida boêmia e conciliar isso com o namoro, a casa, os filhos do casamento desfeito, o trabalho era difícil. Era mais fácil sacrificá-la.

Pacientemente ela ouviu e aceitou o fora, embora não concordasse com um só argumento. Quando foi sua vez de falar, disse-lhe que ele estava sem paz, e essa paz ele não ia encontrar no trabalho, nem em outra pessoa, muito menos na boemia. Que ele não havia vivido para si próprio antes de querer viver para alguém. Que ele estava se escondendo atrás de seus objetivos profissionais para disfarçar uma frustração pessoal. O peito vazio era o dele, não o dela. Ela, sim, estava em paz.

Daí a vida dele recomeça, vem outra mulher de bonsai na mão, ele se encanta e se empolga, volta o vazio do peito, recomeça a grosseria, lá vai outra mulher bacana embora. Fica a sensação de que nenhuma é boa o suficiente, mas não é isso. É a fantasia de querer a mulher perfeita para si e, na hora em que ela aparece, não saber o que fazer com ela.

É melhor ter cuidado com o que se pede.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Lloré pensando en tí

Puedo escribir una o docientas palabras, ninguna hablará el dolor de no oir tu voz, puesto que lloré pensando en tí.

Puedo recostar mi cabeza en las almohadas, yacer inerte en mi cama o en el suelo, nada de eso dirá como lloré pensando en tí.

Puedo caminar todas las calles y correr el país, pero ningun gesto te hará ver que lloré pensando en tí.

Puedo estar muda, el silencio hablará.

Puedo estar en una muchedumbre, la soledad es mi compañía.

Para que sepas que nel silencio calido de la noche lloré pensando en tí.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Que banda é essa?

Dona Regina estava na cozinha, enquanto seu filho ensaiava com a banda, na varanda da casa. Num intervalo, o garoto saiu do ensaio e foi até a cozinha fazer um convite para a mãe:

- Mãe, vamos ao show domingo?

- Mas eu nem sei o que o Mingo toca!

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Cãoplicado...

Dona Regina descansava na rede, e o cachorro dormia embaixo desta. Muito ao longe, ouvia-se o grito de um vendedor de picolés.

Quando o vendedor aproximou-se da casa de Dona Regina, gritou mais uma vez, e o cachorro latiu, fazendo com que a senhora desse um pulo, tamanho foi o susto. Ela imediatamente deu-lhe um tapa na orelha, e perguntou:

- Não gosta de picolé, não, seu mané?

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Contratempos alimentares

- Tem um nervo aqui.

- Onde?

- Aqui na carne, ó.

- Isso não é nervo, é veia.

- Dá no mesmo. Veia me dá nervo.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Balões

Ligou para ele e perguntou onde estava. Em casa! Um domingão daquele, um sol de rachar mamona, e ele em casa!

- Ah, venha para cá! Estou no parque! Vai começar o show daquela banda que você adora.

- Então me espere. Estarei aí em quinze minutos.

E ele foi mesmo. Quando chegou, deu-lhe um abraço apertado, pois sabia que ela estava precisando muito de carinho naquele momento tão complicado. Convidou-a para sentar-se, e assistiram ao show e cantaram todas as músicas juntos. Comeram batatas fritas, ela tomou suco de açaí e ele coca-cola. Riram, contaram piadas, fizeram comentários sobre várias coisas e planejaram textos, caminhos e roteiros literários: eram escritores e do cotidiano se aproveitavam para destilar suas palavras mais insanas. E as mais engraçadas também.

Enquanto a música tocava, havia um vendedor de balões por perto, que estava faturando com a quantidade de crianças desatentas presentes: a todo instante uma deixava um balão escapar de suas mãozinhas, indo parar na cobertura do espaço onde a banda tocava. E os dois achando um barato a maneira que um mocinho tinha de recuperá-los: colou em um balão um pedaço de fita-banana, amarrou a ele um barbante imenso e suspendia-o até alcançar o balão-alvo. Mais uma coisa que merecia ser escrita e descrita!

A conversa se desenrolou por horas a fio. Ele a consolou do jeito mais legal que podia: fê-la rir muito, muito, e nem tocou no assunto que a fazia sofrer. Ela, muito agradecida, correspondia às piadas com outras, porque ele também sofria, e igualmente precisava rir. Amigos que eram, comunicaram-se com os olhos. Para desabafar, não eram necessárias as palavras literais. Para consolar, também não. E assim foram beliscando as batatinhas e cantando.

Ao fim do show, levantaram-se. Deram-se um abraço e saíram andando com as mãos um no ombro do outro. Encontraram um canteiro próximo, de onde podiam observar o movimento do parque. Resolveram só ouvir o movimento, olhando para o céu. Deitados na grama, continuaram a rir, observando os balões que se perdiam no céu muito azul daquela quente tarde de domingo.

domingo, 2 de maio de 2010

Menina ao espelho

Um acidente deformara-lhe o corpo
E perdera de todo a vaidade
Todo rímel era um estorvo
Toda beleza infelicidade

Seis anos, o fulgor já morto
Apelou para a loquacidade
Escondeu-se num sorriso morno
Que lhe ofusca hoje a saudade

Daquilo que não viveu, só molecagem
Brincadeiras de menino com um sentido
Agora com trinta eis a maquiagem

A menina ao espelho não deixa mais caído
O pincel do delineador, agora há coragem
Para pintar seu rosto já não mais dolorido

terça-feira, 27 de abril de 2010

Empezar

tengo algo que sana el dolor
mi perfume y mis manos
un minuto lejos de tu cuerpo
todo el tiempo cerca el corazón
mis uñas rojas que deslizan el amor por tu piel
mis labios rosados que tocan tus ojos castaños
tus bellos y felices ojos
de donde brotaba una lagrima de tanto sentimiento

tengo algo en mis manos
mejor que anestesico
son mis besos y mis sonrisas
que dejo para iluminar tu día
que dejo para iluminar tu noche
que dejo para iluminar tu camino

tengo algo en mi pecho
dos cosas que laten y son tuyas
mi corazón y mi voz
el primer de sangre y palabras
y con él viene la voz para decirte que te quiero

quarta-feira, 21 de abril de 2010

O cheiro do eugenol

Laura acordou assustada, pois dormira o dia inteiro. Eram dezoito e quinze. Olhou-se no espelho e viu seus dentes amarelados, tortos e feios, seu rosto pálido e sua pele fosca. Pensou que era hora de mudar, então colocou um vestido preto, um chapéu, mesmo sendo de noite, um scarpin da mesma cor e saiu de casa.

Ia andando pela rua, sem destino, até que sentiu cheiro de eugenol e olhou para o lado. Leu a placa de uma loja transformada em consultório: "Dr. Fernando Silva - cirurgião-dentista" e entrou. Conversou com a secretária, uma mocinha muito humilde e simpática, que já estava de saída.

- Boa noite, quero marcar uma consulta com o doutor Fernando.

- Boa noite, mas eu já estava indo embora... não posso ajudá-la depois?

- Não, moça, não posso retornar amanhã. É só marcar.

- Para quando então?

- Para depois de amanhã. O doutor atende até mais tarde? Horário de dezenove horas?

- Hmmmm... atende sim, e tem o horário. Seu nome?

- Laura. Meu nome é Laura.

- Marcado. Agora tenho que ir. Obrigada.

A secretária foi embora, deixando as luzes acesas e sem fechar a loja, pois o dentista ainda estava em atendimento. Laura esperou ainda por mais uns minutos para conseguir vê-lo. Foi quando cessou o barulho do motorzinho vindo de dentro do consultório; ouviram-se vozes lá dentro, então a porta se abre e surgem o paciente e o dentista.

- Obrigado, senhor Pedro. Nós nos encontramos então na quarta que vem.

- Eu que agradeço, doutor. Até quarta!

Laura ficou paralisada ante a beleza do dentista. Fernando tinha cerca de trinta e cinco anos, era alto, forte, tinha os cabelos lisos negros e os olhos castanhos, a pele bronzeada de praia. Usava um cavanhaque que deixava em destaque a sua boca carnuda e seu sorriso largo e muito branco, e seus músculos bem definidos podiam ser percebidos sob sua roupa branca e justa.

- Boa noite, posso ajudá-la?

- B-boa noite... - respondeu Laura, com uma vozinha vacilante e suave, não característica sua.

- Posso ajudá-la? Você quer marcar um horário?

- Eu... eu... eu já marquei... depois de amanhã... dezenove horas...

- Seja bem-vinda então, senhora... - foi sentando-se e anotando.

- Laura. Me chamo Laura.

- Belo nome, é o nome da minha mãe. Então eu a espero aqui na sexta. Bonito chapéu também, faz muito tempo que não vejo alguém usar um.

- Obrigada...

- Agora, se me dá licença, tenho que fechar o consultório. Obrigado por ter vindo.

- Até sexta...

Laura foi saindo devagar, hipnotizada. Tinha certeza de que seu tratamento seria inesquecível. Continuou andando sem destino pela rua, observando os carros, as pessoas, os prédios, sem tirar seu chapéu.

Na sexta-feira, compareceu pontualmente à consulta. A mesma cena da semana anterior, a secretária sempre a sair correndo, e o dentista finalizando o atendimento em outro paciente. Fernando convidou-a a entrar, solicitou que sentasse na cadeira e, para ser simpático, perguntou sobre o chapéu.

- Não é sempre que uso, - respondeu Laura, sem olhar para ele. - só quando acho que não estou tão bonita para aparecer para os outros.

- Mas você é tão bonita! Não precisa se esconder!

Realmente a pele de Laura estava com um efeito diferente do da semana anterior. Parecia mais bonita e firme do que aquilo que vira ao espelho, sem marcas, sem rugas. Ela era até uma moça bonita, sedutora, mas não se cuidava muito, e saía somente à noite, para que ninguém visse seu rosto quando estivesse de mau humor. Agradeceu a gentileza do dentista e foi respondendo monossilabicamente às perguntas que ele fazia.

- Então, vamos fazer uma avaliação mais objetiva?

- O quê? - Laura divagava em pensamentos bem longe dali.

- Pode abrir a boca.

- Ah... sim...

Permitiu, então, que Fernando observasse seus dentes um a um. Ele encontrou algumas cáries pequenas e logo propôs o tratamento. Ficaria em tantos reais, poderia parcelar em tantas vezes, poderia dar-lhe de cortesia uma limpeza. Laura somente escutava e nem prestava muita atenção, foi concordando com tudo e marcando logo uma nova sessão, sempre às dezenove horas.

Fernando começou a interessar-se por Laura. Era sempre a última paciente da sexta-feira, poderia aproveitar um dia e convidá-la para um drink após o expediente. Ele era solteiro, o máximo que poderia acontecer era tomar um "não" da moça. Mas guardou seus pensamentos, afinal, não queria perder a cliente, e muito menos ter problemas com o Conselho de Odontologia. Ia divagando nisso, até que ela chegou para mais uma consulta.

Engraçado, parecia que Laura lera os pensamentos dele. Começou a observá-lo com mais critério, analisar os músculos sob a blusa branca, as mãos grandes e delicadas que encostavam em seu rosto. Não o olhava nunca diretamente nos olhos, não podia, e nem queria que ele percebesse que ela o desejava. Tirava o chapéu durante a consulta porque realmente tinha que tirar, por ela ficaria ali, tapando o rosto, para não se deixar hipnotizar por ele. Mas foi impossível resistir. Ao final da sessão, Fernando virou-se de costas para ela, a fim de guardar alguns materiais e dispensar os restos de amálgama. Neste momento, Laura levantou-se e, ainda sentada na cadeira, passou a mão por seu ombro e pescoço, arranhando-lhe de leve com as unhas cor de vinho.

O dentista não resistiu à investida. Já ia aproveitar o momento para fazer-lhe o convite que lhe viera à cabeça uma hora atrás, mas Laura tocou-lhe os lábios com o dedo indicador, como se dissesse que não queria ouvi-lo. Beijou-lhe o pescoço, passou as mãos por todo o seu corpo. Fernando correspondia às carícias e deixou-se levar pelo impulso. Problemas com o Conselho? Nem se lembrava mais.

A moça não perdeu tempo. Foi logo partindo para a área que lhe interessava. Abriu-lhe o zíper da calça e sentiu a máxima excitação do dentista. Retirou-lhe a calça e a cueca e iniciou nele uma sessão de sexo oral tão frenética que Fernando quase ficou louco. Ele gemia, gritava, puxava os cabelos de Laura, como se pedisse mais. E quanto mais fazia isso, mais forte ficava o ritmo que a moça imprimia, ela se excitava ainda mais. E foi sugando-lhe até que ele atingiu um orgasmo. O melhor e mais intenso de toda a sua vida.

Laura queria mais, e não parou, mesmo estando o dentista com a sensibilidade à flor da pele. Não deu tempo para que ele se recuperasse. Continuou o sexo, e foi sorvendo-lhe o esperma, até que Fernando começou a sentir dor. E quanto mais ele tentava retirá-la dali, mais ela o sugava. E sugava, sugava, sugava, e, enfraquecido pela dor e pelo orgasmo recente, não conseguiu ter forças para empurrar a cabeça de Laura. Caiu ao chão e ela continuou até que conseguiu sangue. Por fim, rasgou-lhe o membro com os dentes; subiu ao seu pescoço e ali também os cravou. Abriu-lhe as entranhas e deglutiu tudo o que podia. Mastigou seu coração com a alegria de quem prova um churrasco após uma quaresma de sacrifício. Foi embora, deixando o corpo inerte jogado ao lado da cadeira, fechando a porta do consultório e apagando a luz.

Laura, então, pôs o chapéu na cabeça, e saiu caminhando pela rua, sem destino. Observava as pessoas, os automóveis, as construções. Ia despreocupada, até que olhou para o lado quando sentiu cheiro de eugenol.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Caro data vermibus

Eram onze da noite quando o professor Leonardo deixou a sala de necrópsia com seus alunos. Um terrível silêncio tomava conta do local. Mesmo sendo estudantes e ele professor, aquele calar de corpos ainda era uma sensação estranha para todos.

Faziam aquilo às ocultas, pois sabiam que era carne, e profaná-la, mesmo que fosse dada aos vermes, era motivo para a morte e a perseguição. Em 1509, certamente era um pedido para isso.

Já na rua, um aluno novato pergunta:

- Professor, quando terminamos de dissecar esta caro data vermibus, o que fazemos com ela?

- Shhhhhhh! Não diga essa expressão! Chame-o "cadáver".

domingo, 28 de março de 2010

Vinha do mar

Vinha do mar
A brisa que trouxe teu perfume
Atravessa o continente
E me traz a paz feliz da tua presença

Vinha do mar
A brisa do teu perfume
Que ainda hoje está nas minhas mãos

Vinha do mar aquela brisa
Viña del Mar

terça-feira, 23 de março de 2010

Necessária solidão

"Ansiedad de piloto, furia de buzo ciego,
turbia embriaguez de amor, todo en ti fue naufragio!"

(Pablo Neruda - "La canción desesperada")

Saiu de um relacionamento super conturbado, em que o sujeito era um grude, ciumento até o tucupi, ligava demais, cobrava demais e, para ele, amar era sinônimo de sofrer. Ela até chegou a dizer a ele algumas vezes que não sabia porque ele sofria por ela, já que ela sempre fora fiel e estava com ele. Mas não, ele queria mais. Queria sugar não só o seu dinheiro, não só o seu corpo, mas também o seu espírito livre. E percebeu, com o tempo, que era ela quem deixava a situação ser conduzida por ele.

Podia resumir o relacionamento de nove meses no seguinte: nos três primeiros chorava, morria de culpa, fazia coisas ridículas para satisfazê-lo; nos três do meio ela já batia de frente, não aceitava as coisas tão facilmente, apesar de sustentá-lo de certa forma, porque o sujeito era incapaz de arrumar um emprego decente e, quando arrumava, achava tudo ruim; já nos três últimos ela batia nele. Certa vez, um lavador de carros teve que segurá-la, senão ela ia matar o encosto. E quando a coisa descamba para a agressão física, acabou o respeito. E, se acabou o respeito, é porque o amor foi embora muito antes. Ou nem veio.

Uma reflexão profunda sobre os seus sentimentos. Tomou um choque porque, no fundo, sempre soube que nem chegou a amar esse homem mesmo... Algumas vezes o sangue se esvaiu de seu rosto quando ele dizia "eu te amo", e ela respondia o mesmo de forma automática, mais pela expectativa dele e para não decepcioná-lo que pelo sentimento em si. Ela gostava dele, apaixonou-se, e agora percebia que não o amara. E, para completar, vivendo agora o luto que não se permitiu viver em outras épocas. Seu péssimo hábito de emendar um relacionamento no outro não a permitiu perceber o quanto era importante ficar um tempo consigo mesma e avaliar seus sentimentos antes de entregar seu coração a outrem.

Um grande amigo chamou-lhe a atenção para este fato quando ela escreveu um poema em que mata o ex-namorado. Aí foi outro momento de choque: ela percebeu que ainda estava muito ferida e magoada, não pela saudade, porque isso não sentiu nem uma vez, mas só sentiu falta do sexo, que era excelente, na primeira semana. Felizmente tinha amigos ótimos e que a apoiaram muito. Ela ainda estava magoada pela exploração financeira, física e psicológica. Estava magoada consigo mesma pela idiotice que se permitiu. Logo ela, tão cheia de predicados, se enrabichar por algo que definitivamente não valia a pena.

Quando se tem trinta anos, a gente já consegue separar bem o que é sexo, amor, paixão, desejo, cirrose... E também, segundo as palavras de seu grande amigo, a gente acaba entregando nosso coração a outrem por fuga, e não por amor. E machuca demais quem está com a gente. Então, no momento, ela está quieta, mas não totalmente em paz.

Ele tentou fazer com que ela pedisse demissão, ficava na casa dela no fim de semana de oito da manhã às vinte e duas horas, para ter certeza de que ela estaria suficientemente cansada para não sair para a rua [procurar macho]. Quando estava lá, ficava no pé dela, não a deixava conversar com seus pais. Ele a acusava de complô quando ela conversava com eles. Pergunta oportuna: que complô?

Se há uma coisa que ela adora fazer desde criança é lavar carro. Nem isso ele a deixava fazer, porque queria ficar pendurado em seus lábios. Mas ela o largava e ia lavar o carro no domingo sim, senhor, porque usa e tem mais é que cuidar. Se o carro dele era todo problemático porque ele não cuidava, achava que era só usar e estava tudo certo, é um problema dele. Hoje em dia ela ri, e daria tudo para ele vê-la de minissaia calibrando pneu e pondo água no reservatório do radiador.

Certa vez ela precisou fazer uma prova em outro Estado, e ele quis porque quis ir com ela, ia dar um jeito de matar o dia de trabalho para acompanhá-la, mas não teve jeito. Ela comprou a passagem e somente informou a ele que iria. Enfrentou quatorze horas de viagem e enfim descansou. Foi seu primeiro momento em paz sem ouvir a voz dele. Fez a prova, dormiu como um anjo, não teve que suportar ele pedindo para que o masturbasse; retornou, e na volta as mensagens que ele havia mandado no celular se acumularam, sendo recebidas somente quando ela entrou novamente em seu Estado. Uma delas chamava a ausência de resposta como "silêncio conveniente". Não passou pela cabeça dele a falha de comunicação natural quando se está fora de área. Quando ela desembarcou, rumaram para um motel. Ele fez amor, ela fez sexo. Olhando para o teto. E decidiu que era a hora de acabar com aquilo tudo.

Ele tocou em seus brios quando tentou fazer com que ela desistisse de seu maior sonho. Ele queria que ela escolhesse entre ele e a profissão. Já estavam terminados, e ela pediu o favor de levá-la a alguns lugares para buscar uns documentos, pois ele estava de moto e o deslocamento seria mais fácil assim às dezoito horas. Ele ficou sem lugar, pois, quando ela adentrou o aeroclube, ele não sabia o que fazia, pois só tinha homem lá e o "pior": todos a conheciam. Depois tentou discutir com ela relação que já tinha acabado. E conseguiu, despertando o que de pior havia nela, a mais corrosiva inimiga que se poderia imaginar.

Alguns dias depois, ela foi para a cabeceira da Pampulha, observar os pousos e decolagens. Precisava daquele tempinho para processar a raiva de si e a raiva dele. Na volta, passou em frente à casa dele para saber o que ia sentir. Desta vez não sentiu nada. Estava processando melhor os acontecimentos. Mas sua liberdade ninguém tira. Ela ainda é uma alma alada.

Hoje ela conseguiu pronunciar o nome dele sem se irritar, sem se arrepiar. Ir namorar aviões fez um bem danado a ela. E só depois de um tempo é que ela aprendeu que não tem que mudar só para agradar o outro. E que a solidão se faz necessária, porque faz bem estar consigo mesma. Faz bem se bastar. E ainda há de chegar o estado de graça e de paz.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Café

Ai, café!

Como amo esse neguinho gostoso! O cheiro que invade as narinas e toma conta da sala só é comparável em força ao do chocolate. De vez em quando desço do céu para pilotar fogão. E ali eu experimento a trufa, derreto o chocolate meio amargo com um pouco de creme de leite e, claro, a vodca para conservar e dar sabor. A de café é um pouco diferente, feita com chocolate branco e café solúvel. Um sabor incomparável.

Incomparável ainda é este cheiro na minha sala. A fumaça branca subindo da cafeteira parece um gênio sendo libertado da lâmpada. Gênio, definitivamente, foi o sujeito que descobriu que, torrados e moídos, os grãos vermelhos e firmes tinham um aroma inigualável, que atravessou séculos e gerações.

Incomparável é pensar que é algo tão comum em nossa vida, tão pouca quantidade, mas que faz uma diferença danada. Revigora, esquenta o corpo, aquece a alma. Faz levantar ideias, pensamentos, ações. Faz levitar.

Incomparável é a força que ele traz. O paladar refinado procura notas de chocolate, frutas e madeiras, tal qual um bom vinho. Vinho é bom, mas às vezes dá sono. Café dá vida.

Incomparável é a capacidade que ele tem de reunir as pessoas logo no começo do dia, seja no trabalho ou em casa. Café é o singular e perfeito acompanhante de leite, pão, requeijão, suco. Ele reina absoluto. As pessoas habitualmente não dizem "vou comer um pão". Dizem, à hora do lanche, "vou tomar um café".

Continuo amando o chocolate, mas o café tem o seu lugar especial. Já ganhei muitos presentes nesta vida. Certamente o melhor deles foi uma xícara de um delicioso café, feita com todo o carinho do mundo, na manhã do meu aniversário.

domingo, 21 de março de 2010

Ritalina com bobagem

A minha bobagem é sem ritalina mesmo, porque sóbria é mais gostoso de se fazer as coisas. Por isso resolvi começar o meu dia com uma oração.

“Pai nosso que estais no céu, meu pai não é piloto, ele é mecânico. Santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino. Complicado isso, fica parecendo aquelas conquistas medievais, um rei invadindo o reino do outro, castelo, dragão, princesa... Onde eu estava mesmo? Ah, sim, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. É, piloto, quando está em terra, fala de avião, quando está em voo, fala de mulher. Bobagem danada, gente. Eu queria, a uma hora desta, estar em comando para ver na prática mesmo o nível de cruzeiro. Por isso que atleticano nunca é piloto, para não ter que se manter em nível de Cruzeiro. A propósito, o jogo do América foi ótimo, pena que o juiz tenha roubado tanto. Tadinho do Mequinha, tão injustiçado! Nossa, viajei. O pão nosso de cada dia nos dai hoje... Putz! Lembrei que tenho que pagar o seu Manoel da padaria! Ah, não faz mal, amanhã eu vou lá e aproveito para fazer a unha com a dona Judite. Só que os esmaltes dela estão ruins, vou sugerir comprar uns novos, tem umas cores bonitas que saíram estes dias, última moda. Ah... ahmmm... é... tá. Amém.”

* Texto originalmente publicado no blog http://ritalinacombobagem.blogspot.com

sábado, 20 de março de 2010

Voando baixo

- Controle, reporto moça chorando na 13!

TPM

- Que foi? Nunca me viu, não?

sexta-feira, 19 de março de 2010

Os trinta anos de Julia

Tinha nas mãos o poder dos trinta anos de Julia.

E tinha mesmo. Era uma mulher bonita, decente, estudada. Conheceu os melhores restaurantes, as melhores escolas, era fluente em três idiomas. Trabalhava muito e com afinco, era dedicada em tudo aquilo a que se propunha fazer. E com essa mentalidade atraiu as melhores pessoas para sua vida, exceto os amores. Tinha os melhores amigos, mas nunca dera sorte, ou sabe-se lá porque, atraía sempre os piores homens, em especial os “lobos em pele de cordeiro”.

Tinha nas mãos a sedução de Violetta.

Ah, sedutora! Isso ela sabia ser, como Violetta Valéry de La Traviata. Requebrava como ninguém, sabia se fazer notar. Não precisava dizer nada, apenas com o olhar estava a sorte lançada. Todos os homens se encantavam por ela e dançavam ao seu redor, e ela só tinha o trabalho de escolher um. Mas tinha o dedo podre. "Libiamo!"

Tinha nas mãos a volúpia de Rania.

A amazonense Rania, de Milton Hatoum, é perfeita para descrevê-la em capacidade de administração e delícia de mulher que era. Era gostosa, podemos dizer assim. E sabia como ninguém controlar os gastos, os custos, o que e quando comprar, o que investir na empresa. E errou feio quando se permitiu um incesto. Pelo menos é o que conta Omar, seu outro irmão.

Além disso, vinha de brinde o coração frágil de Cio-Cio-San.

Cio-Cio-San foi uma boba que ficara esperando por um Pinkerton que nunca vinha. Mudara hábitos, costume, religião, tudo para agradar àquele que nunca dera valor aos seus sacrifícios. Assim era nossa heroína. A bondade que deste coração fluía era tamanha que não media esforços para ajudar a quem amava. Hoje em dia, arrepia-se a tal ponto quando escuta o nome do último que a fez sofrer que a ereção dos pelos chega a doer e seus olhos ficam marejados.

Fragmentos de um coração bom, mas que se permitiu amar poucas vezes. Como Violetta, seduziu aquele que achava que a faria contente; com a delícia de Rania o conheceu em uma noite; com o coração de Cio-Cio-San entregou o que de mais precioso havia em si. E corroeu-se no ódio quando percebeu que tanto esforço, tanto estudo e tanto sacrifício não serviram de nada. Foi caindo em si, e aos poucos se apercebeu de que estava junto de um psicopata, que tinha prazer em vê-la sofrer. Não agiu como Cio-Cio-San, suicidando-se quando Pinkerton se foi com a esposa americana. Preferiu continuar a vida como Julia. E tinha que perdoar a si mesma pelas atrocidades que permitiu que com ela fizessem.

Julia, sem acento mesmo. A Julia de Honoré de Balzac, aquela que, sem dó nem piedade, chuta o balde quando se dá conta de que a maior besteira que fizera foi se casar sem estar totalmente entregue àquele amor de corpo e alma. Foi bobinha e agora se notou mulher. Precisava e merecia recomeçar.

Amanhã nossa heroína sopra velas, e com elas vem o inconfundível, espetacular e austero poder dos trinta anos de Julia.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Senti falta do teu boa-noite

Quando adormeci calada e cansada
Escutei milhares de vozes
E a tua não estava entre elas
Perdida fiquei entre ruas e avenidas
E luzes e conversas e faróis
Senti falta do teu boa-noite
E saí para procurá-lo pela cidade

Ouvi música
Senti cheiros
Esbarrões de braços e bolsas
Caminhei pela calçada
E pelo meio da rua
Retirei os sapatos e descansei numa guia
Tudo porque senti falta do teu boa-noite
E ainda não consegui encontrá-lo

Perambulei pelo parque
Pisei descalça a grama
Permiti que a Lua me banhasse com sua luz
E fui andando a esmo até entrar no nosso quarto
Procurando ainda o teu boa-noite

Rolei na cama
Ainda não tinhas me dado boa-noite
E então vi pela janela um avião caindo
O estrondo da queda me acordou
Era só um coincidente trovão
Acordei assustada na cama vazia
Sentindo falta do teu boa-noite

quarta-feira, 17 de março de 2010

Teu sorriso de girassol

Alimentei meu pássaro com sementes de girassol
Ele comia
E na terra algumas deixava cair
Girassol brotou
E sua vida se fez presente

Cresceu com a graça de todas as flores
E o amarelo por Deus pintado em suas pétalas
Lá estava seu sorriso lindo e certo
Tingindo de alegria o meu dia

Girassol cresceu e seus braços abriu
Abraçou o jardim e elevou ao sol as sépalas
Sorriu
E com o calor em seu rosto cantou
E encantou o jardim com sua voz de contralto

Girassol um dia calou-se
E fez com que todo o jardim chorasse
As rosas, as gérberas, os lírios, os cravos
Todos sucumbiram ao silêncio do girassol

Girassol, sorriso de luz e calor
Apenas deu um adeus temporário
Subiu ao céu para ficar ao lado do sol
E de lá manda todos os dias um beijo com amor

Alimentei meu pássaro com sementes de girassol
Ele comia
Deixava cair e algumas brotavam
E nenhuma será como aquela flor linda que se foi
Com seu eterno sorriso de Gi-rassol

* Dedicado a Gizelle Reis Beirigo Dutra.

domingo, 14 de março de 2010

Desejo Macabro

Quero beber e me perder por esta madrugada
Afogar-me em todos os copos de álcool
Passear por entre corpos manchados de sangue
Quero vomitar no teu corpo e na tua carne

Quero fazer da tua morte a minha glória
Empurrar-te do alto da serra
Juntar-te aos corpos que estão manchados

Na tua cabeça errante
Eu deveria querer morrer sobre uma bandeja
Ser carregada e devorada por ti
Sei que desejas uma ceia do meu corpo
Daí me devoras para não me veres mais

Quero violentar as cercas da tua alma
Violentar-te, empalar-te
Massacrar-te com minhas níveas mãos
É meu macabro desejo
Morder a tua boca e arrancar-te os dentes
Um beijo para sugar-te a vida
Eu te amei e hoje te odeio

Tentaste devorar não só minha carne
Mas junto foi o pão que o diabo amassou
Faço tudo que meu desejo permite
Estripo-te
Dou tua carne aos abutres
Passas por tudo e entendes minha história
Porque um dia te amei e hoje te odeio

Por este desejo macabro
Levo-te aos confins do mundo
Voamos por sobre os corpos manchados
E moribundo que estás ali ficas
Porque não conseguiste me devorar

Minha alegria é a minha vingança
Pois cada vez que te peguei pela mão
E voamos por sobre o vale das sombras
Joguei-te ao subsolo do sentimento e ali ficaste preso

E eu continuo meu voo sozinha
E em paz sem a tua maldita companhia

sexta-feira, 12 de março de 2010

A estrela

A estrela brilha!
Cabe na palma da minha mão
É carinho, brilho fácil
E está no meu coração.

A estrela brilha
Solto-a no ar
Toda vez que quero falar
É só para cima olhar.

A estrela não se apaga
Brilha forte no meu coração
É carinho, brilho fácil
E cabe na palma da mão.

(1986)

quinta-feira, 11 de março de 2010

Enquanto isso, de novo, no mesmo centro de convenções

Conversa entre a irritada consultora de vendas e a gerente comercial:

- Não concordo, senhora, que esta cliente queira usar esta área sem pagar. Ela é muito espertinha!

- Mas você não pode falar assim com os clientes.

- Eu não falei assim com ela. Estou falando com a senhora. E eu não concordo.

- Calma, isso tudo é negociável.

- Sei, a técnica mineira da pechincha... - disse a consultora, inclinando a cabeça para um lado e para outro.

- Claro, mineiro pechincha! Você não é mineira? - perguntou a gerente, como se fosse óbvia a resposta a seguir.

- Não, sou amazonense.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Aline

Ele me procurava incessantemente, com aquela carinha de menino tímido e aquele sorrisinho de canto de boca que derrete qualquer mulher. Parado do outro lado da avenida, sob a luz da Lua, contemplava meu corpo e o meu rosto etéreo. Fiz um sinal com a mão, chamando-o, e ele veio. Bastou isso para que ele chegasse bem perto, de forma que pude sentir seu perfume misturado ao suor da corrida.

Puxei-o pela mão e seguimos para uma boate. Eu queria dançar até me acabar. As luzes ritmadas, a fumaça do gelo seco, tudo me deixava feliz. Girava na pista e, num joguinho gostoso, deixava com que meu cabelo se esvoaçasse e batesse de leve no rosto dele. Toquei-lhe as mãos e pedi para comigo dançar, para que eu pudesse, enfim, sentir seu inebriante perfume mais de perto. Convidei-o para dar uma volta, tomar um ar. Ele quis pegar o carro, mas não deixei, preferia ir a pé. O som de The 69 Eyes, então, foi ficando longe enquanto caminhávamos.

Por um momento parei, e contemplei o seu rosto. Encostei-o num poste e beijei-o sofregamente, queria mostrar-lhe tudo o que eu queria, que me inundasse com seu desejo. Deslizei minhas unhas cor de sangue por seu pescoço e passei por seu corpo ainda suado da dança. Desci-lhe o zíper da calça e o beijei. Provoquei. Fiz tudo o que sabia que ele gostava, olhando no fundo de seus olhos. Queria vê-lo com a respiração ofegante, com o cheiro da paixão transpassando todos os poros. Era perfeito, eu fogosa e ele hipnotizado.

Ele se perdeu em meu gesto de carinho e finalmente esqueceu-se de que estava na rua. E como era belo, como me tentava! Meus movimentos iam ficando cada vez mais fortes, e o que eu queria mesmo era que ele fizesse amor comigo ali mesmo. Ele me procurava tão incessantemente, e eu queria e podia dar a ele o melhor que já tivera. E podia responder-lhe à altura.

Toquei seus cabelos na nuca, e pedi-lhe, sem palavras, que me desse o melhor sexo que já dera a alguém. Ele soube ler meus olhos, meus lábios e meus dedos. Com sua delicadeza, levantou meu vestido e afastou minha pequena calcinha lilás, escolhida especialmente para ele. Apoiei-me no poste, de costas para ele, e pedi que me penetrasse. Sussurrei e gemi baixinho a cada movimento, e arrepiava a cada vez que ele me puxava para perto de seu corpo.

Quando terminamos, senti que quem me contemplava agora era ele, num misto de ternura e inocência. Eu sabia que o tinha encantado.

À aurora eu precisava me despedir. Sentia pesar em deixá-lo, mas preparei-lhe todo o caminho, sabia que ele ficaria feliz por tudo que eu fizera. Preferi deixá-lo sozinho quando ele me disse algumas doces palavras, dei-lhe um beijo e não quis que ele me acompanhasse até a saída.

Também não deixei com que ele percebesse que no momento em que o chamei do outro lado da avenida um baque surdo se fez ouvir. Seu corpo fora abalroado e atirado a metros de distância por um veículo sob o comando de um ébrio. Ele se olhava no ataúde, e eu não quis saber se ele se achava bonito ali, apenas quis despedir-me com um terno beijo. E assim fiz.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Ele chamou meu sorriso de "Aline".

* Baseado no conto "Teu sorriso se chama Aline", de M. D. Amado.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Soltanto un sogno

E piove.
Allora sono qui in tuoi bracci
M'accarezzi e mi baci!
Mi lasci star in tuo cuore
Mi lasci far d'attesa il piacere!
Ah, amato mio,
Mi lasci esser la tua essenza
Mi lasci far il meglio della tua vita
M'accarezzi, mi baci,
Mi lasci coi tuoi bracci!
E piove.
E qui siamo noi
Tra le dita e le piane parole...

Foi aí que acordei e vi que estava no Brasil de novo. Merda.

domingo, 7 de março de 2010

Metamorfose



Toda a preocupação de minha mãe era que eu tivesse como me alimentar. Escolheu a melhor planta, observou se havia outros insetos próximos, se havia reservas de água. Ela realmente foi bastante gentil em ter me deixado numa bromélia num jardim viçoso, o qual sei que ela visita todos os anos. Pelo que me contaram, ela é laranja, e eu serei como ela. E com certeza eu a verei na próxima primavera.

Minha transformação é, no mínimo, estranha. Eu era tão pequenina e quase transparente, e de repente fiquei escura, cheia de listas amarelas e brancas. Quando me movo, o meu corpo faz um movimento engraçado, como se uma onda passasse por todo ele. Sinto-me esquisita, fria, feia. Disseram-me que a minha mãe é linda, laranja, com desenhos pretos e pintas brancas, e agora eu não estou entendendo mais nada.

Estou ficando cansada, e já não consigo mais me mover com aquela agilidade de antes. Até tem alimento aqui perto, mas está me dando uma preguiça! Acho que estou é gorda, por isso não consigo me mover. Sono... Fiquei um tempo sem prestar atenção ao que eu fazia, até perceber que me envolvia num casulo de seda, macio, que eu mesma estava fazendo. Deve ser bom balouçar nesta rede, e estou com cada vez mais sono. Fechei a portinha e fiquei quietinha lá dentro.

Ah, que sonhos lindos eu tive! Vi minhas asas novas, laranja como as da minha mãe, e eu voando até outro jardim que não este em que ela me deixara. Neste jardim, eu via um humano, um homem, sentado, triste, e observando o meu nascimento. Como agora, eu já estava no casulo, e dava sinais de que iria sair. O homem me observava com cuidado, e seu olhar se perdia na minha dificuldade para sair da casca. Ainda bem que ele não me ajudou.

Comecei então a despertar do meu sonho e vi que realmente estava na hora de sair. Percebi que estava enroscada em algo que não era o casulo, e fiz uma força enorme para tentar me libertar. Girei sobre mim mesma, e com o próprio movimento fui relaxando a rede que teci. Então fui abrindo devagar uma fresta, e notei que o que me enroscava o corpo eram as minhas asas. Doía, mas eu precisava sair, e fui me abrindo devagar, até que vi as lindas asas laranja com que a minha mãe me presenteara. Fiquei feliz.

Quando eu estava quase saindo da bromélia para reconhecer o jardim, vi o homem que apareceu nos meus sonhos. Lá estava ele, na mesma posição, observando meu nascimento. Como em meu devaneio onírico, ele não me ajudou, e isso foi fundamental para que eu tivesse força para voar. Observei durante um longo tempo as lágrimas que se faziam rolar no seu rosto, e eu não pude dar-lhe um abraço. Não pude enxugar seu pranto. Não pude dizer-lhe palavras reconfortantes.

E quem disse que precisa ser humano e dizer as coisas do mesmo jeito que eles dizem? Nós, animais, sabemos dizer da nossa forma. Voei para perto dele, e pousei sobre seu ombro. Disse-lhe, com voz de borboleta que sou, que era difícil sair do casulo, e que ele não imaginava o quanto doía aquele processo. Em alguns momentos, pensei que me quebraria toda, mas a mãe natureza é muito sábia e permitiu que nós fizéssemos esse esforço hercúleo para alçar a liberdade, de forma que ensinássemos todos os dias aos humanos que as dificuldades são inerentes à vida e que é para crescer que elas servem. E passam.

Nós, animais, sabemos do nosso jeito confortá-los. Vi, então, que ele sorriu com a minha presença laranja. Deixei-lhe um beijo na ponta da orelha e saí voando.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Cuida de mim

Quando eu estiver caído
Usando vestes rotas
E proferindo palavras mal ditas e malditas
Quando eu estiver insone
Perambulando pela rua
Procurando abrigo
Cuida de mim

Quando eu estiver faminto
Necessitado de alimento de espírito
Sedento de saber
Quando eu estiver pálido
Assustado e acuado
Procurando o abrigo do teu colo
Cuida de mim

Quando eu estiver triste
Precisando de amor
E do teu acalento
Quando eu estiver cansado
Precisando dos teus braços
Procurando o teu abraço
Cuida de mim

terça-feira, 2 de março de 2010

Enquanto isso, num centro de convenções qualquer...

- Boa tarde! Eu gostaria de fazer um orçamento para um evento.

- Sim, senhor, qual o tipo de evento e qual a data?

- É um congresso, para o meio do ano.

- Um minuto, por favor.

O consultor levantou-se para pegar o calendário. Ao retornar ao telefone, perguntou:

- É julho?

- Não, é Vinícius.

Sonhei que dançava um frevo

Sonhei que estava em Recife, e na praia eu dançava um frevo. Nunca fui a Pernambuco, nunca gostei de dançar e nem sou fã de carnaval, mas eu estava na rua pulando ao levante de "Vassourinhas", no meio do Galo da Madrugada.

Sonhei com o dia colorido, o céu azul, a areia branca, as barracas e os guarda-sóis multicores. O verde das árvores e a brisa que soprava do mar completavam a sensação de estar flutuando.

Sonhei com pipoca, com doce de coco e picolé. Sonhei com tapioca doce, salgada, recheada com jabá. Sonhei com a felicidade do povo, nem que fosse só uma vez ao ano. Sonhei com o carinho delicado do mar em minha pele, com o sal deixando seu sabor sobre mim, com o abraço de cada onda a me aceitar naquele pedaço de Brasil.

Sonhei que caminhava e abraçava as pessoas, e que olhava em seus olhos e dizia-lhes o quanto eu era feliz, apesar de boba. Meu dia colorido até começou a ficar cinzento, mas nem liguei, pois estava dançando, pulando e dando gritos de satisfação.

Sonhei que continuava meu frevo depois que o céu começava a se fechar. E debaixo da chuva, eu pulava e gritava a liberdade, girava a sombrinha e a passava leve por debaixo das pernas. Abaixava e levantava com a mesma agilidade dos passistas recifenses natos.

Sonhei que dançava o frevo da minha vida, a alegria de recomeçar, o sacudir da poeira, a retomada dos meus sonhos. Por isso é que eu "frevia" e fervia na avenida, os braços abertos, rodopiando, minha gargalhada escandalosa e, misturadas aos grossos pingos, as lágrimas de emoção por estar em paz e livre novamente.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Piloto

Minha vida é o aeroporto
Estar na chegada e na partida
Ver o abraço, seguro porto
Ver o choro da despedida.

Meu passo é o toque, a arremetida
Meu destino é não ser morto
Meu pulsar é a minha vida
Meu leme não ruma a torto.

Todo dia perto de Deus,
Rasgando o céu a levar os teus
Sem nuvens num lindo agosto

Toda a vista e o manche são meus,
As montanhas e todo o adeus
Estão comigo, sou teu piloto.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Verbos defecativos

Eu extorco o presidente
Eu abolo a escravidão
A minha empresa fale
E eu coloro uma nova nação
Eu explodo o Palácio do Planalto
Eu demolo o Itamaraty
Compito nas olimpíadas
Da nossa inducação

Eu tou falando a verdade,
E não me correge!

É assim que nóis veve,
Porque nóis asseste
A novela das sete

Tudo o que nóis deve
Nóis distribói
E se de um lado aumenta
Do outro diminói
Porque para tudo isso
Nóis contribói

(1999)

*Parceria de Glaucia Piazzi e Grace Piazzi

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A valquíria

Serva de Odin, aquela bela valquíria conduzia os mais bravos guerreiros à Valhala. Fazia esse trabalho com esmero e alegria. Era feliz. O sorriso que se estampava em seu rosto traduzia a serenidade que transmitia a quem estivesse perto.

Era ela uma valquíria. Não a específica funcionária de Freya, mas uma mulher simples, doce, delicada. Sem pressa, sem destino, apenas viva. Namorou muito tempo um moço humilde, de bom coração, mas que foi dispensado quando ela se apaixonou à primeira vista por outro. Com este casou-se, teve dois filhos, e foi feliz por alguns anos.

Cavalgava nos céus com armadura brilhante e punha seu dedo no curso da guerra. Determinada e inteligente, apontava aquele vitorioso. Novamente casou-se e acreditou em amor eterno, viveu com este um belo romance. Mais tarde, já cansada de escoltar o seu herói, saiu de cena.

Foi morar numa casinha no meio do nada, perto de um cemitério. A Valhala estava ali ao seu lado. Sentava-se por horas sobre os túmulos e fumava uma erva para relaxar e para com seus guerreiros poder conversar e combinar o caminho até o salão de Odin, em preparação para o Ragnarok. A festa acontecia todos os dias, uma celebração à vida dos guerreiros e à morte dos deuses que a impedissem de simplesmente viver.

Sua voz de contralto, já de senhora, é imponente, sabe o que diz e o que quer. Não impõe medo, mas autoridade. É mãe de pássaro. É Randgrior, o escudo de paz. É som da ópera de Wagner tilintando no campo. Esquece o que fala no meio da frase, mas nunca se esquece que é abraço em cachoeira, é cheiro de flor e carinho de mato. É tão somente uma val-quíria.