segunda-feira, 30 de março de 2009

Juiz lá fora

Enquanto a amiga sai para trocar uma nota, aquela linda jovem, de cabelos dourados e pele morena, ao som de Guilherme Arantes, fecha sua conta no saguão do hotel.

São nove da manhã, o sono ainda visitando seus olhos castanhos. Procura na bolsa as chaves, pega um espelho, ajeita o cabelo, a maquiagem. Assina o cheque, organiza as malas, olha para trás e vê que o ônibus que as aguardava já não mais estava na porta. A amiga, lá fora, observa estarrecida a partida do veículo, e a jovem morena torna-se num palor de cera.

Tentam em vão alcançar o ônibus. Desnorteadas, pensam juntas numa solução. Precisam retornar à sua cidade, à sua casa, ao seu trabalho. Decidem não mais procurarem o veículo que partiu sem elas, vão até a rodoviária da cidade, compram passagens para um ônibus convencional. Deveriam estar de volta às treze horas, mas só conseguirão, debaixo de um forte temporal, estar em casa às dezenove.

A linda jovem permaneceu alva com o susto, e agora o corpo processava o abandono, a ignorância, e respondia com revoluções gástricas e vesicais. O esquecimento corroía-lhe o coração e às vezes enrubecia-lhe a face. Falava da dor, que ora amenizava, ora voltava mais forte.

A amiga, serena, digere em silêncio o que mais tarde se transformaria num misto de raiva, de terror, de consternação. Ouve a jovem, estende-lhe a mão e vela seu sono durante a viagem.

Desembarcam caladas, ajeitam suas bagagens no táxi. Retornam cada uma para sua casa, levando no peito a sensação de terem sido pisoteadas.

É segunda-feira. A linda jovem de cabelos dourados e pele morena, esquecida, levanta-se para mais um dia de trabalho, com seu sorriso mais radiante e a garra de uma grande guerreira.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Oração

Ela não se cansa de repetir que o ama, com toda a sua alma, com todo o seu ser, com todo o seu sorriso, com a sua alegria, até com a sua dor e com o seu desespero.

Ela o quer e o deseja com toda delícia, com todo o fogo, com toda a pele. Só de pensar nele, sente o seu toque, seu cheiro, sua pele roçando-lhe o colo, sente o amor transbordando em seu peito e enchendo o dela.

O mais genuíno amor é o que acontece com os dois, sentindo ambos a mesma coisa, mas há neste momento a dor absurda por estarem longe um do outro. Ai que falta teu abraço faz! Como ela queria passar esta noite com ele, dormir sentindo a sua respiração no pescoço, a sua voz firme e suave ao seu ouvido!

Não se imaginam mais um sem o outro, pois, se assim o fosse, a vida seria sem graça, sem cor e sem som, sem alegria. Viverão tudo o que não puderam, e viverão agora tudo o que podem e merecem. Merecem ser felizes, e o merecem juntos, e é isso o que querem: viver e envelhecer um ao lado do outro.

Ela pede apenas que ele a ame como o ama, que a deseje como o deseja, e ele terá para sempre a companheira que pediu a Deus, abençoada e de braços e peito abertos para ele. Agradecem e pedem a Ele todos os dias para que os abençoe e os proteja de todo o mal, porque são a mulher e o homem um da vida do outro, e deixaram-se escapar várias vezes, mas agora tornaram, e para sempre.

Despedem-se ao telefone, ela louca de saudade e com os olhos marejados de tanta vontade de estar junto dele. Sonha que sente seus beijos e afagos, e pede que ele durma tranquilo e na presença dos anjos do Senhor, e que eles o guardem e o ajudem - como também a ajudam - a suportar a distância com serenidade.

sexta-feira, 20 de março de 2009

A vida é um mingau

A vida é um mingau, com sabor de milho verde e canela pulverizada por cima.

Daqueles deliciosos que a mamãe fazia nas noites de frio, substituindo o jantar, ou então no lanche da tarde, com cereal e banana cortada por cima, como nos comerciais de tevê.

A gente come pelas beiradas, coloca bocadinhos na boca pequena e que logo se torna grande, pois o mingau está quente e a mamãe avisou para ter cuidado.

Às vezes está mais ralo, muito doce; é de milho, é de maisena, é de flocos de cereais. Tem dias em que é salgado, a gente estranha o primeiro, mas logo se acostuma.

Mingau não precisa mastigar. Por isso mesmo, seu sabor chega com mais facilidade às papilas, espalha-se, aquece a alma.

Mingau tem sabor das tardes em que pulávamos de dor durante o banho, pelos joelhos escalavrados após os tombos dos carrinhos de rolemã, dos papelões rasgados na descida do morro gramado, dos muros pulados e das expedições - geralmente não autorizadas - às goiabeiras dos vizinhos. Do tempo em que só reclamávamos por ir à escola, e reclamávamos mais ainda por não querermos ir no dia de nosso aniversário.

Mingau tem sabor de pipa ao vento, de aviãozinho de lata, de cuidado de criança com passarinho que quebrou a asa.

Mingau é a inocência em alimento, tem sabor de infância, de saudade; da paz e da doçura que só as crianças sabem ter quando olham para o mundo e acham que já são grandes.

domingo, 15 de março de 2009

O primeiro voo

Ela entra no carro, desce a serra e alcança a planície. Comendo carambolas e falando sem parar, sua vivacidade contagia. Ainda em terra, no aeroporto, o coração pulsa por aquela escolha que seria a mais feliz e fiel a si que já fizera. Ela era aviadora, amava a liberdade, a velocidade, a máquina, a inteligência. Tomara para si a responsabilidade sobre o direito de ir e vir.

Observa a aeronave com a brejeirice de uma criança e a precisão de um piloto. Dentro de alguns minutos teria em suas mãos o manche, os profundores, a deriva, o leme, o estabilizador e, ah, as asas, que também tornavam alado o seu espírito.

Taxia até a pista, reconhece os comandos como quem dirige um automóvel pela primeira vez. Alinha na cabeceira, ouve as instruções, põe o capacete, testa a comunicação.Ouve maravilhada o som do motor quando acionado. Dá potência e a aeronave corre na pista, e finalmente alça seu primeiro voo. Era a liberdade bradando-lhe que era isso que queria e deveria fazer pelo resto da vida.

Deus, ela já é feliz com o que deste, e é com este belo sol e este profundo azul que nela puseste a coragem para voar. Ela suporta o estol com um suspiro, impulsiona a aeronave até onde possa ver águas, nuvens, montanhas cobertas de verde, de laranja, de amarelo, de arco-íris.

Encara o vento de través sem medo, como uma comandante experiente, empunhando firmemente o manche enquanto as asas descrevem sua trajetória curva até atingirem a perna do vento. Baixa mais alguns pés, toma a perna base e pousa como uma borboleta, suave, sem pressa, sem barulho.

Desce da aeronave com todas as cores nos olhos, todos os sabores na boca, todos os sentimentos nas mãos. Estava de alma lavada e alada.

domingo, 8 de março de 2009

Essa mulher

Lá vem ela, a meninota de dezesseis anos, com dor nas costas, de carregar pasta, sacola, livro, violão. Tropeça nos degraus das escadas, pois é pequena e às vezes mal enxerga o chão, tamanha quantidade de coisas que leva. Desengonçada, surge claudicante pelas dores nos joelhos, a voz suavemente oscilando entre a de menina e a de moça, as unhas roídas e o uniforme do colégio folgado, que não deixa transparecer suas novas e curvas formas. Espanta não pela aparência desleixada, mas pelo mundo de informações que carrega. Nem se sabe para quê ela carrega aquele violão, pois não sabe tocá-lo.

Espanta inclusive aquele rapaz de quem ela gosta, a quem não pode ver que se empolga na fala, e despeja-lhe os livros que leu, as óperas que ouviu, as músicas que lhe embalaram o sono e a vida. Ele sai, e ela, mesmo triste por ele tê-la deixado, resigna-se com um sorriso e agradece a sua presença.

Ela cresceu.

Lá vem agora aquela mulher, na flor de seus vinte e cinco anos, luzes no cabelo, as unhas ainda curtas, mas não tão rotas, e o bom e velho violão nas costas. Agora ela já sabe a diferença entre dó maior e lá menor, não mais espanta pela aparência, mas ainda por muita informação. Aprendeu a amar e a colocar as ideias em ordem. Aprendeu a ouvir, a falar, a compreender, a analisar e a tocar a alma pela voz.

Essa mulher, saltitando de alegria, carrega em si a beleza sensível e aveludada da orquídea. Sabe que tem a força, que suporta agora não só o violão, mas o mundo nas costas, e a vida em seu ventre. Essa mulher, que salta aos olhos com suas curvas formas agora aparentes e delicadamente envolvidas por um vestido estampado, gostosamente desabrocha para a vida, e a vida agradece por ela ser e existir.

sábado, 7 de março de 2009

Treze Anos

De eriçar-lhe os pelos e provocar-lhe o arrepio da alma e do coração, ele passou-lhe a mão pela cintura, apoiou a mão em seu quadril, disse-lhe gracejos e pediu-lhe um beijo. Foi-lhe negado em um primeiro momento, mas o arrepio que percorria o corpo dela dizia que era chegada a hora da renúncia ao passado, da entrega completa e da liberdade.

Ela sabia que amava verdadeiramente aquele homem que, mesmo depois de tantos anos, ainda despertava reações que ela mal compreendia, ou, se compreendia, não queria deixar-se levar. Talvez por insegurança, ao pensar que ele poderia rejeitá-la, ou pela sua pouca idade, mas agora, mulher feita, sabia que podia. Tinha nas mãos a volúpia de Rania, o poder dos trinta anos de Julia, a sedução de Violetta, mas o coração frágil de Cio-Cio-San.

Se poderia aproveitar, seria agora, não desperdiçaria mais uma vez a chance de roubar-lhe um beijo. Não precisou. As bocas se calaram e o pedido, novamente feito por ele, foi atendido. Naquele momento, a magia da divagação de quinze segundos antes do encontro os envolveu, o encanto foi quebrado e a comunicação, principal habilidade dos dois, desta vez não falhou, apenas mudou de verbal para a materialização da sensibilidade.

As palavras já não mais faziam diferença, pois finalmente suas bocas e seus corpos se encontraram, e o arrepio de coração contagiou aos dois e elevou-lhes o espírito em oração e agradecimento. Foram treze anos esperando, amando de longe, em silêncio. Treze anos amargados em amores mal amados, mal resolvidos, mal vividos.

Em uma noite, os treze anos de espera transformaram-se no mais puro, sincero e verdadeiro amor, em que a loquacidade de ambos foi calada com liberdade, respeito, carinho e pelas lágrimas de alegria por haverem se reencontrado.