terça-feira, 17 de março de 2015

Olhos e coração abertos


Fiz um plano de parto todo bonitinho e, assim como o partograma, ele saiu todo da curva. E é justamente isso que o torna bacana: tudo na minha vida nunca foi no padrão mesmo, acredito que com meu filho não seria diferente.

Tudo começou na terça, dia 10/02. Vi que o tampão havia saído. Estava com 40 semanas e 2 dias de gestação e aguardei então o início do trabalho de parto espontâneo. Na quarta, quinta e sexta o tampão continuou saindo, e ainda na sexta, 13, comecei a ter contrações. Começaram às 5 da manhã. Pensei: hoje vai! E foram ficando fortes e de 3 em 3 minutos. Fui para a maternidade.

Chegando lá, umas 17 horas, as contrações haviam parado e fui submetida a exames de praxe. Algumas enfermeiras disseram que eu deveria ser internada para fazer a indução naquele momento. Não havia levado nada para o hospital, estava despreparada e, se meu marido saísse para buscar qualquer coisa em casa, eu ficaria sozinha, porque moramos bem longe do hospital. De verdade? Arreguei. Saí de lá, não quis ser internada e voltei para casa.

No sábado não senti nada. No domingo, as contrações voltaram no mesmo esquema de sexta. Fui para a casa da Eliana, minha doula, que fez alguns exercícios comigo para ajudar na dilatação. No último exame de toque que havia feito na sexta já estava com 4 cm. Era um indicativo de que estava correndo tudo fisiologicamente bem. Pausa: outro dia comentei que para parir você não precisa de uma vagina, mas sim de joelhos íntegros. Você agacha, anda de pato, abaixa para pegar algo, já que a barriga não te deixa dobrar no meio. E haja joelhos para executar toda a série proposta pela Eliana! Bom, mas aí lá pelas 13 horas, as contrações simplesmente pararam. Voltei para casa mais uma vez.

Na segunda, dia 16, de novo não senti nada. Nada mesmo. Nem mesmo movimentos fetais. Aí fiquei preocupada. Desta vez me muni de coragem e fui de novo para a maternidade, preparada já para ficar. Passamos na casa da Eliana para buscá-la e seguimos para o Sofia Feldman.

Fui internada às 17 horas. Parece que a mudança de ambiente me fez bem. Ao entrar na sala do pré-parto, comecei a sentir contrações novamente e os movimentos do bebê. Marcaram meu nome no quadrinho e começaram a me monitorar. Meu marido, Paulo César, revezava com a doula, para que eles pudessem comer e descansar. Quem passou aquela noite comigo no hospital foi ele.

Até às 10 horas da terça senti contrações. Inclusive dormindo tive. Sonhava com elas. Porém, quando acordei de verdade, elas simplesmente pararam. Aí pedi a primeira intervenção: descolamento de membranas. A enfermeira fez tão direitinho e foi tão cuidadosa que não senti a dor absurda que imaginei que ia sentir. Suspeitei estar com a bolsa rota, pois o tampão que havia começado a sair na semana anterior agora vinha com uns gruminhos verde-escuro, que percebi ao sentar na cama. Mecônio. Ah, meu Deus...

Pedia a todo instante uns pensos, esses pedacinhos de pano para colocar na calcinha, enquanto sentia as contrações. Todo o momento que a doula estava comigo ela me lembrava de fazer agachamento para ajudar na dilatação. Minha bexiga devia estar com uma capacidade de no máximo uns 40 mL, porque além de fazer xixi toda vez que agachava, até doía pelo peso do bebê. Cheguei a dizer que estava a fim de fazer um litro de xixi, que não aguentava mais ficar fazendo de pouquinho em pouquinho. Evoluí para 5-6 cm até as 13 horas.

Nesse momento, foi feita a segunda intervenção: ligaram a ocitocina em mim. Meu colo já estava favorável, então era só um empurrãozinho mesmo. As contrações estavam suportáveis. Eram nível piriri. Só que nem bem se passaram dez minutos de ocitocina, tive uma cólica de rim brava. Pedi socorro pelo amor de Deus. Acharam que eu estava confundindo contrações uterinas refletidas por todo o abdome com o meu rim. A Eliana mesmo me disse que eu tenho uma consciência corporal muito boa, que sei dizer com exatidão o que dói e em qual escala. Pois bem, me examinaram e ligaram o Buscopan no soro também. O alívio foi quase imediato: realmente tive uma cólica de rim, e sim, ela dói mais que as contrações uterinas.

Lá pelas 15 horas resolveram ligar um aparelho de cardiotocografia em mim. Contavam que a minha idade gestacional era de 42 semanas e 2 dias (mas para mim ainda continuam sendo 41+2, e não tem quem me demova disto!), e que por isso tal monitoramento era necessário. A essas alturas, meu coração de mãe já começou a pensar que o desfecho não poderia ser aquele que sonhei. Para começar, tinha pensado em parir na água, num dia de sol, com a luz vindo do meu lado esquerdo. Só pela idade gestacional já não pude ir para a banheira, aí o negócio desandou, embora tivesse acesso a tudo o que precisaria, mas usei mesmo só o chuveiro.

Às 17 horas me levaram para a sala de parto. A luz vinha do meu lado esquerdo, como imaginei. Desta vez o Paulo César e a Eliana puderam ficar junto comigo ao mesmo tempo. Ligaram de novo a cardiotoco em mim. Batimentos cardíacos do feto não eram tranquilizadores. As contrações estavam mais fortes, vindo de 3 em 3 minutos, nível piriri mais agressivo. Romperam minha bolsa e saiu pouquíssimo líquido, oligrodrâmnio já indicado no ultrassom que havia feito com 39 semanas. E nada de o trabalho de parto engrenar. Estava deitada sobre meu lado esquerdo e a posição me incomodando demais.

Às 19 horas as contrações atingiram um nível de dor insuportável. A cólica de rim ficou bem para trás. Parecia que tinham dois ganchos, um de cada lado do osso da bacia, que eram tracionados, me rasgando no meio. A dor começava no púbis e se espalhava pelas laterais do osso. Ao mesmo tempo, sentia o bebê batendo no púbis e voltando. Pedi analgesia.

Antes de ir para o biombo da analgesia, conversei com o Dr. Roberto, que estava de plantão naquela noite, e já mandei a real: como escrevi no plano de parto que estava disposta a encarar uma cesárea se fosse necessária, que ele preparasse tudo caso após o efeito da analgesia passar eu ainda não tivesse parido. Muito solícito, esclareceu todas as dúvidas, fez um toque, e a posição do bebê sempre dava -1 em relação à espinha isquiática, e saiu. Eu queria um parto normal, mas não a qualquer custo. E não me perdoaria se acontecesse qualquer coisa com meu bebê.

Fui para o biombo e cheguei lá vomitando, de tanta dor. Minha pressão, que até então estava nos 11 x 8, foi a 15 x 10 (altaaa...!), que vi no monitor. Alguém foi lá limpar a bagunça que eu havia feito e logo a Dra. Rafaela resolveu meu problema. Alívio imediato, voltei para a sala de parto. Desta vez tudo escuro, as luzes apagadas, só a do banheiro, que estava de frente pra mim, acesa. Fiquei na banqueta de parto com a cardiotoco ligada outra vez. Pedi para baixarem o volume, porque o barulho estava me estressando. Fui monitorando as contrações e fazia força toda vez que o número verdinho ia lá nas tampas.

"Vai passar". Foto: Eliana Cunha

Sentia a vagina arder. Colocava a mão embaixo para ver se sentia a cabeça do meu filho descendo. Nada. A enfermeira que me acompanhava, Graziele, até me perguntou o que eu estava sentindo, para tentar me ajudar. Iluminava o ambiente com a tela do celular – confesso que essa iluminação estava até agradável, porque tudo escuro também era muito estranho. Colocaram oxigênio em mim. Ela fez toque, e a posição do bebê continuava sempre em -1 em relação à espinha isquiática. A dilatação já estava em 7-8 cm. O índice de Bishop para mim dava 9 no momento da admissão, o que contava como bastante favorável à indução, nem lembrei de perguntar nesse momento, que deveria estar ainda bem mais alto. Fiei-me nisso.

Quase 22 horas, o efeito da analgesia passou. Já estava totalmente dilatada. Voltei a sentir as contrações e pedi pelo amor de Deus para desligarem aquela ocitocina de mim e saí arrancando as correias da cardiotoco. Já lá no fundo eu sabia que seria cesárea. O Dr. Roberto entrou na sala, fez toque novamente e, adivinha! Não saímos do -1! Ele me informou que se tratava de uma parada de progressão e que era indicação real e necessária de cirurgia. Lembro de ter falado: “salva a gente então, Roberto!”. Ele foi muito bacana e explicou que tentaram ao máximo seguir tudo o que estava no meu plano de parto, mas tem coisas que não estão na nossa mão. Como já havia voltado a sentir as contrações, ele explicou mais algumas coisas que não me lembro bem, mas sei que aceitei a “derrocada” de bom grado.

Baixei a cabeça na cama, rezei um Pai-Nosso e uma Ave-Maria e pedi a Deus que nos protegesse. Contemplava o céu limpo, estrelado, e incrivelmente eu não me perguntava se eu merecia aquilo. Logo eu, defensora do parto normal! Mas não, apenas aceitava porque sabia que seria assim, não me pergunte como, não me pergunte por quê. Morria de dor, mas por dentro eu estava em paz com aquilo.

Fui para o chuveiro e a Eliana chamou a minha mãe, que estava desde as 18 horas lá fora. Abracei e beijei ela, chorei de cansaço. Reclamei que não consegui parir, mas o Paulo César me abraçou e falou que eu fui guerreira demais, que ele não aguentaria duas horas o que eu aguentei dois dias. Que eu fui brava, acreditando na causa que eu defendia. Isso me deu ainda mais forças para encarar a cirurgia.

Ainda fiquei uma hora sentindo contrações sem a ocitocina. Eram ainda fortes, mas não no nível das de 19 horas. Vocalizava a cada contração e conseguia desenhar com a voz a onda de dor que sentia. Não gritei, eram gemidos altos. O Dr. Roberto me falou que iam preparar o bloco cirúrgico e que logo voltaria para me buscar (isso foi o que ele me contou. Porque para o Paulo César ele falou a verdade: disse que me deixaria mais uma hora sem a analgesia para ver se eu poderia progredir no trabalho de parto).

Antes de entrar no bloco cirúrgico, me falaram que eu tinha que escolher apenas uma pessoa para entrar comigo. Como gostaria que fosse o marido, me despedi e liberei a Eliana naquele momento, para que ela também fosse para casa descansar, depois de tanta massagem e tanta paciência dispensada a mim durante um dia inteiro. Toda mulher merece uma doula. Sério.

Na mesa de cirurgia, recebi ainda um último toque do Dr. Roberto, ao qual classificamos de “desencargo de consciência”. Adivinha? -1!!! Dra. Rafaela voltou à cena e fui devidamente anestesiada. Ali começava o primeiro dia do resto da minha vida. Morria a Glaucia e nascia a mãe.

Às 23h37 veio ao mundo o Francisco, de olhos bem abertos, com 3,600 kg e 53 cm. Chorou só porque era protocolo. Deu uns gritinhos e ficou foi prestando atenção à sua volta. Não sei se vocês acreditam nisso, mas quando o vi de olhão aberto, pensei logo: “é uma alma velha”. E comentei na mesma hora: “aí, Pecê, ele é a sua cara!”, no que toda a equipe olhou para ele e concordou: “é mesmo, pai, parece muito com você!”. Ele teve Apgar 8 no primeiro e 9 no quinto minuto. Trouxeram-no para mim, para eu cheirá-lo e conhecê-lo. Eu não estava de mãos amarradas, apenas o cansaço físico me impedia um contato melhor com ele. Cheirinho bom de neném, mesmo com mecônio!

"Cheguei!"

O Pecê, agora papai, estava extremamente cansado e passando mal dentro do bloco. Falaram com ele que ele podia pegar o neném. Ele falou que estava com medo de quebrar o bebê! Coitado, entendo o cansaço, a ansiedade e a dor física que ele estava sentindo só de nos ver naquela situação. Mas ele foi lá e pegou, tirou foto com o meu e com o celular dele. Tirou selfie. Avisou todo mundo. Já era um papai feliz.

Avisaram-me que o líquido amniótico estava fétido. Aspiraram os pulmões do Francisco. Trouxeram a placenta para eu conhecer, do jeitinho que eu pedi no plano de parto! Comentei que o corpo humano era lindo, e a pediatra, Dra. Kamille, concordou bem comigo. Enquanto era suturada, adormeci. Dr. Roberto foi me acordar ao final, achando que eu estava passando mal, mas era só cansaço mesmo, até porque já era a hora natural de eu dormir. Nesse momento, a equipe quase inteira saiu do bloco correndo para acompanhar um parto de gêmeos de 24 semanas e ali quem ficou terminou os procedimentos de retirada da sonda vesical, me colocar na maca, vestir o Francisco e nos levar para a enfermaria.

Dispensei o marido para ele ir para casa dormir e minha mãe ficou comigo naquela noite. No dia seguinte, quase morri para levantar da cama e tomar um banho. Estava sangrando muito ainda. Não consegui dar o primeiro banho no Francisco, no que fomos auxiliadas por uma enfermeira muito simpática e solícita.

Tive dificuldade de amamentação. Nas primeiras 24 horas, nada de leite. Chorei de desespero achando que não ia conseguir alimentar o meu filho além de tudo o que já havíamos passado. Fui obrigada a ceder ao complemento, até que fui à sala de ordenha do hospital e me ensinaram a fazer a estimulação correta.

Bem, achei que ia embora para casa na sexta pela manhã, quando a Dra. Kamille passou na enfermaria e anunciou que tinha acabado de internar meu bebê, pois a PCR dele tinha dado alterada, além de a frequência respiratória estar acelerada. Caso esta afecção não fosse tratada, poderia evoluir para uma sepse. Foram mais 11 longos dias no hospital: desta vez eu como acompanhante do Francisco, que recebia antibiótico intravenoso, e tendo que levantar, sentar, sair da cama, trocá-lo, tudo com a barriga ainda doendo muito. Fora a quantidade de gás que fica presa dentro de você. Dá até choque.

Para piorar, embora estivesse dando leite loucamente e muito feliz por poder amamentar, o teste da linguinha dele deu alterado. Ele mamava muito, se cansava rápido e não se fartava. O pouco xixi denunciava isso. A avaliação da Fga. Camila, minha contemporânea de faculdade inclusive, foi fundamental para o sucesso do aleitamento.  Aprendi que a amamentação deve ser prazerosa para ambos!

Foi constatado que ele tinha o frênulo da língua um pouquinho maior, a chamada "língua presa". Alguns casos têm indicação cirúrgica, como ele, que passou pela frenotomia, outros necessitam apenas de acompanhamento. Esse teste pode evitar desmame precoce - ele estava mastigando o meu mamilo, que ardia. São essas coisinhas, “inhas”, tá?, além da pega errada, que fazem mães morrendo de dor e mamilos rachados enquanto amamentam. Está errado. Os meus não racharam e não deram problema até hoje. Sobre o procedimento, é praticamente indolor e quase não sangra. O pediatra Dr. Felipe fez na enfermaria mesmo. E a criança já mama assim que o faz.

A recuperação da cirurgia tem sido pesada. E a sensação de que todos os órgãos lá dentro estão despencando? Você não consegue parar em pé. Na semana da cesárea mesmo, não havia conseguido ir ao banheiro ainda. Na tentativa, vi estrelas, doía mais que a própria cirurgia, pois além de tudo, ardia. Deram-me óleo mineral, anti-inflamatório, dimeticona e uma injeção de cetoprofeno que, juro, vi não só estrela, mas a família inteira pela greta. É mais dolorida que a contração e a tentativa de ir ao banheiro, porque não só dói, como arde e queima. Mas consegui ir ao banheiro e há até uns 4 dias ainda estava dependendo do óleo mineral. Anestesia é punk, mano.

Voltei para casa e alguns pontos abriram. Fui ao hospital para retirá-los e voltei com uma receita de antibiótico e anti-inflamatório (de novo). Acabo de tomá-los amanhã. A cicatriz já parou de arder e já estou um pouco mais independente. Francisco faz hoje um mês. E permaneço com uma sensação inenarrável de missão cumprida, porque entrei de coração aberto naquele bloco cirúrgico. Minha cesárea foi necessária para que nossas vidas fossem salvas, e é isso o que eu digo o tempo todo: não sou contra a cirurgia, sou contra a banalização de um recurso que só deve ser usado em último caso. Não se acanhem de precisar de uma cesárea, mas sejam leoas se não precisarem. Não é fácil passar por uma cirurgia desse porte – eu já havia feito uma cirurgia abdominal anos atrás e já sabia que não seria nada fácil a recuperação.

Das mudanças no meu corpo, continuo ainda com a chamada “barriguinha de mamãe”. A pele ainda está escura e flácida na região do umbigo. Também percebi que houve mudança no ângulo da vagina, o que notei pelo novo posicionamento do absorvente na calcinha. Aliás, minhas calcinhas estão quase todas manchadas de sangue. Pensei em jogá-las fora, porém ontem, observando-as no varal, já não as vejo mais com nojo, mas como verdadeiros troféus de guerra.