sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O dia depois da minha morte

por Erika Paola Brú Vélez

Este texto é um conto da jornalista colombiana Erika Paola Brú Vélez. Escrito juntamente com seu irmão, com ele participou de um concurso em Cartagena, sua cidade natal, no qual obteve o primeiro lugar dentre muitos escritores. É baseado em uma história real, de um amigo muito próximo de sua família, Andrés Mauricio Trucco Orta.

Foi traduzido do original em Espanhol, que se encontra em http://erikapao.blogspot.com/. É o Mingau promovendo a integração literária da América Latina!


* * * * *

Ainda não acredito. Por quê, meu Deus, por quê? Me pergunto a cada vez enquanto a alma se me estraçalha ao ver minha mãe abraçada a um caixão, rodeado de uma porção de coroas, muitas pessoas naquela salinha dando a impressão de que não há espaço para tanta gente, todas chorando e lamentando a morte da pessoa que está ali no ataúde, parecendo felizmente adormecido mas que sabem que jamais despertará desse sono profundo. E eu ainda não consigo acreditar. É um pesadelo? Se é assim, quero despertar logo de uma vez, mas como faço? Ninguém pode me ajudar. Tenho medo de me aproximar do caixão porque é uma sensação terrível, pensei que isso só acontecesse em filmes, mas está acontecendo comigo.

Não pensem que é bonito ver seu próprio funeral. Este jovem que ali jaz, provocando uma tristeza enorme em quem o conhecia, sou eu: André Felipe Lopes Moreno. Tenho, ou tinha, Deus, como é difícil explicar!, quinze anos de idade e por um estranho golpe do destino hoje estou aqui, vendo o meu velório, sentindo uma grande impotência em ver a minha mãe desesperada, chorando desconsolada, perguntando-me por quê Deus fez isso com ela. Não sabes, minha mãe, o quanto eu queria abraçar-te, dizer-te “mamãe, não se preocupe, eu estou aqui contigo! Ainda não fui e não irei nunca”. Mas não posso, ela não me ouve, não me vê, talvez me sinta, mas não como eu queria que sentisse.

Deveria ter aproveitado enquanto era vivo para dizer tantas coisas, tantas que eu queria que ela soubesse, mas agora é muito tarde. Talvez porque eu acreditasse que era jovem demais para morrer, isso de morrer era coisa de gente velha, eu teria uma longa e feliz vida, era assim que pensava. Hoje Deus me ensinou e me fez ver o quanto eu estava equivocado. Só Ele decide quando e porque devemos partir deste mundo.

Caminho pela salinha, de um lado para o outro, desesperado, buscando respostas a perguntas que eu ainda nem sequer havia formulado. Quero estar vivo! Repito isso várias vezes esperando que Deus me faça um milagre. Tento acariciar as flores das coroas que muitos enviaram, mas não posso, e muito menos sentir o cheiro tão lúgubre que delas emana, como quando morreu meu avô e eu soube pela primeira vez o que era estar em um velório e em um enterro. Agora o estou vivendo por mim mesmo, sei que meu avô esteve todo o tempo conosco, assim como agora estou com todos aqui na salinha da funerária.

Creio que nunca vou superar isso de minha morte. Justo agora que estava vivendo meu melhores momentos, me sentia na plenitude da vida. Malditos delinquentes! Mil vezes malditos! Me arrancaram o mais precioso que tinha: minha própria vida. Às vezes me pergunto se estava no lugar errado e na hora errada, ou se definitivamente, como dizem as pessoas, era minha hora. Não entendo nem porque fiquei no meio do fogo cruzado: ladrões de banco contra a polícia. Um acontecimento cotidiano nesta cidade tão sem segurança. Mas, como todo jovem, você nunca espera que isso que aparece nos jornais aconteça a você. Claro, isso acontece lá longe, em grandes capitais, você pensa assim, muitas vezes ignorando que o perigo está mais perto do que o que você imagina.

Ontem saí de casa para comprar picolés e esperar meu pai, que voltaria de uma viagem mais à noitinha. Meu velho agora está ali sentado sem pronunciar palavra, mas se nota em seu olhar perdido uma dor imensa e profunda. Como me dói vê-lo assim também! Continuando com a trágica história do fim da minha maravilhosa vida, quando estava atravessando a rua pude ver uma caminhonete quatro portas que vinha em alta velocidade e percebi que um dos ocupantes saía pela janela com uma enorme metralhadora, apontando para o carro de trás, que era nada mais nada menos que a polícia. Imediatamente começaram os disparos. Policiais e bandidos em guerra no meio da rua, sem se importarem com quem estava em seu redor. Só me lembro de ter sentido um impacto profundo no coração e tudo escureceu. Queria abrir os olhos, me levantar, mas não podia. Ao longe ouvia-se uma ambulância, podia sentir a presença de muita gente em volta de mim, gritando desesperados, algumas mulheres chorando.

- Salvem-no! Salvem-no! - ouvi que gritava uma idosa desesperada. - Ele é tão novinho! - diziam outros.

Será que eu estou ficando doido? Era tão eminente e evidente assim a minha morte? Senti quando me puseram na ambulância e o médico que me assistia apertava forte a minha mão e dizia:

- Resista, mocinho, você é um grande homem, vamos, resista, você é forte! - mas eu sentia que as minhas forças se esvaíam pouco a pouco, e já quase não escutava o que os outros diziam.

Chegamos ao hospital. Imediatamente me levaram para a sala de cirurgia para extrair a bala, mas o mal já estava consumado. A bala penetrou profundamente o coração, eu já não tinha chances. Meus sinais vitais ainda estavam presentes pela minha juventude, mas desde há muito tempo eu já havia deixado de pertencer a este mundo.

Senti que me tornava leve, já não sentia o peso do corpo e foi quando pude me ver pela primeira vez fora dele é que notei o que fui em massa corporal. Tentei voltar ao corpo, como nos filmes, tão ingênuo eu acreditando que assim poderia reviver, mas nada, o esforço foi em vão.

Pude notar uma lágrima escapando dos olhos do médico enquanto retirava as cânulas e se rendia diante deste duelo contra a morte.

Eu o segui, queria ver a quem ele daria a má notícia. Na sala de espera estavam minha mãe tão linda, com um terço nas mãos e o livro de orações que nunca a desampara; minha irmã, muito pálida e com um lenço na mão, talvez preparada para o pior; uma tia; a mulher que foi minha babá e uma vizinha, todas esperando que o médico dissesse “nós o salvamos”!

O momento seguinte foi algo aterrador. Uma experiência que, de tão horrível, só de lembrar eu morro de novo. O médico pronunciou as palavras que elas não queriam ouvir. “Lamento, fizemos todo o possível, mas o garoto não resistiu. A bala lhe penetrou tão profundamente o coração que qualquer possibilidade de se salvar era muito remota. De verdade, sinto muito, ele ainda era muito jovem para morrer, mas a vida é assim!”

Pobre da minha mãezinha, não resistindo a tão impactante notícia se desvaneceu no chão frio daquele hospital. Tiveram que socorrê-la imediatamente com calmantes e outros medicamentos. Minha irmã, um pouco mais tranquila, tentava ser forte, mas a dor lhe era tão lancinante que até as enfermeiras se comoveram e choraram ao seu lado, apoiando-a. As demais, sem sair de seu assombro, choravam e choravam desconsoladamente.

Minha mãe pediu na funerária que a deixassem me vestir pela última vez e obviamente aceitaram. Chegou com uma mochila onde estava a minha roupa. Escolheu a camisa de linho branca de que eu tanto gostava, com a qual ia aos aniversários de quinze anos das minhas amigas, e a calça bege que me foi dada de presente por papai quando eu completei quinze anos. “Como fico bonito!”, pensei, uma pena que para tão mau momento.

Enquanto me vestia, com a mesma paciência de quando eu era um bebê ou creio que até mais, porque agora eu estava duro e frio e não mais frágil e quentinho como um recém-nascido, ia me dizendo muitas coisas que ela me dizia quando estava vivo, mas a verdade é que poucas vezes prestei atenção e nunca dei tanto valor como agora.

“Lembro-me do dia em que me disseram que eu estava grávida de você” - começou. “Sua irmãzinha tinha cinco anos de idade e queria um irmãozinho. E com seu pai pensamos em dar você de de presente a ela. Assim que descobri que o estava esperando, fiquei tão emocionada!” - dizia, enquanto colocava meu braço na camisa. “Sua irmã pulava de felicidade e toda a minha gravidez foi muito festejada porque eu esperava o homenzinho da família. E o que dizer quando você nasceu? No hospital decoraram meu quatro com bolas azuis e serpentinas, os presentes já não cabiam no quarto. Você era tão pequeno e indefeso, mas sempre lindo, sempre foi e serás lindo, inclusive agora, não importa que esteja frio e eu te vestindo para a morte, mas preciso que as pessoas te vejam pela última vez, que te vejam divino, por isto escolhi esta roupa de que você tanto gostava e com ela enlouquecia as meninas nas festas”.

Minha mãe, tão linda. Ali estava, vestindo seu “bebê”, como sempre me dizia. Falando comigo como se eu ainda estivesse vivo, como se soubesse que eu a estava ouvindo. E sim, mãe, é verdade que estou te ouvindo, e desta vez com mais juízo do que nunca.

“Filho meu, meu bebê! Não sei que mal eu fiz a Deus para que Ele me desse esse castigo tão horrível, de levar você do meu lado para nunca mais voltar a te ver.” - dizia agora sem poder conter o choro compulsivo. - “Quero que você saiba que sempre, sempre te levarei no coração, sempre será parte da minha vida, mesmo que não esteja presente de corpo, mas sua alma está comigo. Eu amo você desde antes de saber que você existiria, sonhei com você quando era adolescente e me imaginava quando fosse mãe. Cuidei de você como meu maior tesouro durante estes quinze anos, que me parecem tão poucos. Sei que dizem que os filhos são emprestados, mas esperava que Deus lhe emprestasse para mim por muitos anos ainda, que você trabalhasse, que me desse netinhos, que pudesse te ver homem feito, de caráter.

Mas se Deus assim o quis, não continuarei questionando Sua vontade, como boa católica e cristã que sou, e me resignarei com a alma destroçada a aceitar a sua partida. Talvez Deus necessitasse de um anjinho a mais para seu exército e levou o mais lindo de todos os que estavam na terra.”

E, dizendo isso, terminou de me colocar os sapatos e me jogou perfume por todo o corpo, não sem antes me dar um abraço bem apertado e um último beijo que eu não pude nem sentir.

E aqui estamos. Na salinha do funeral. Imagino o quanto deve ter sido terrível a notícia para meu pai quando chegou da viagem à noite. Não era justo tê-lo recebido com essa notícia. Vou sentir saudades das suas conversas, suas piadas pesadas, as partidas de xadrez, os jogos de futebol e basquete, as idas ao estádio e aos concertos, nossos passeios de bicicleta, quando me explicava matemática e física, seu amor e compreensão incondicionais. Sentirei falta de tantas coisas do meu velho! Espero que Deus o reanime a fazer isso tudo levando com ele um pouco de mim.

Minha irmã. Elisa, linda de todo jeito, está sem maquiagem e vestida de preto, essa cor que ela tanto odeia porque diz que é muito triste. Não para de chorar, vieram suas amigas para consolá-la. Leva nas mãos um porta-retrato com nossa foto, uma que tiramos semana passada em um estúdio conhecido. Sei que agora também estará blasfemando por Deus lhe haver tirado seu braço-direito, seu companheiro de aventuras, seu confidente, seu consentido. Agora tampouco terá com quem brigar pelo último pedaço da pizza, para ver quem usa primeiro o computador, quem fica com o controle remoto da televisão, quem lava os pratos. Vou sentir muita saudade, mas estarei no Céu cuidando dela e espero que me dê lindos sobrinhos e tomara que lhe ocorra pôr em um o nome do tio. Seria uma linda homenagem para mim.

Sabem, me dei conta de uma coisa. Nos funerais sempre aparecem pessoas que nunca conheceram o morto. Vi gente que nunca vi na vida. Devem ser amigos dos meus pais e da minha família.

Tampouco pensei que jamais viesse tanta gente ao meu sepultamento. Isto me fez arrepiar a pele, desculpe, qual pele? Já havia até esquecido que não a tenho mais.

Aí estão todos os meus amigos do colégio, como sentirei falta deles! Quem dera pudesse dizer a eles o quanto os amo, mesmo que brigasse com alguns deles. Estão meus amigos do bairro, do time de futebol, do curso de inglês. Está também Susaninha, a menina a quem eu ia pedir para namorar esta semana, que raiva! Apesar de estar com os olhos inchados de tanto chorar continua sendo tão linda, inocente, espero que encontre um bom rapaz que a ame como eu e a possa fazer feliz como eu queria ter feito.

Já chegou o padre. É um velhinho encurvado, assim imagino que fará tudo rápido e que logo vai embora. Todos rezam pelo descanso eterno de minh'alma. Ainda não posso acreditar nesse momento. Minha irmã lê a oração final. Vamos para o cemitério.

A caravana de carros é interminável. As pessoas na rua ficam abismadas com o acontecimento e muitos murmuram entre eles: “Deve ser alguém famoso ou muito rico”. Pois a verdade é que não era nenhuma das duas opções. Famoso entre meus amigos talvez e a riqueza que eu possuía era fruto do trabalho humilde de meu pai, e não é muita, mas o suficiente para se viver decentemente.

Chegamos ao cemitério. O caminho foi curto. Já nem sei o que sinto. Quando eu receber uma pá de terra em cima, já ninguém se lembrará de mim, ou talvez muito de vez em quando.

Minha mãe fica de um lado do caixão, o acaricia pela última vez. Meu pai e minha irmã a abraçam fortemente. Leem uma curta oração e o sacerdote dá a ordem ao coveiro para iniciar os trabalhos. Neste momento eu quis gritar. Quis dizer a todos que estou aqui. Que os amo muito. Deus, quantas coisas deixei de dizer ou fazer! Se as pessoas soubessem disso, seguramente aproveitariam cada instante de suas vidas para fazerem saber aos demais o quão importante são uns para os outros, pediriam-se desculpas ou quem sabe não se ofendessem tanto, nunca deixariam para amanhã o que poderiam fazer hoje, fossem mais conscientes da realidade em que vivem e que não possam ignorá-la pensando que nunca serão vítimas deste ou aquele problema.

Se as pessoas soubessem que estar morto não é tão bom assim, viveriam a plenitude a cada segundo, cada hora, cada dia, cada semana, cada mês, cada ano, cada instante. Se eu pudesse dizer isso a eles, talvez me escutassem por um momento.

Continua a terra a cair sobre mim ou, bem, o que se supõe que era eu. Esse corpo, agora sem vida. Lembrando-me um pouco de Platão, sobre aquilo da alma e do corpo, e ele tem toda razão, o corpo não serve de nada se não tem uma alma que lhe dê vida, que o impulsione e motive. E meu corpo já ficou sem alma e sem vida.

Do céu, que é para lá que acredito que devo ir, cuidarei da minha família e de todas as pessoas a quem quero bem, para que não suceda-lhes nada de mal. Tomara que Deus me permita tornar-me um Anjo da Guarda para estar mais perto dos que amo aqui na terra. Será difícil não continuar vivendo a minha mesma vida agora. Me pergunto tantas coisas! Agora o que acontecerá, para onde irei, do que vou viver, será que continuarei a sentir fome, sono, sede... Deus deverá me responder e me explicar porque permitiu que essa bala me atingisse, se acaso foi isso que Ele determinou para mim.

Já quase não se vê o caixão. Um pouco mais de terra e ficarei alguns metros sepultado, voltando para o Deus de onde viemos todos, para o pó.

Minha mãe está um pouco mais calma, creio que porque já não existam mais lágrimas em seus olhos porque já chorara todas. Meu pai e minha irmã apenas olham tristes, e muito tristes acomodam as as coroas sobre o montinho de terra que se formou sobre mim. Elisa pediu para escrever meu epitáfio, que ficará sobre a lápide quando se cumprir o prazo suficiente para instalá-la.

As pessoas pouco a pouco começam a ir embora, despedindo-se dos meus pais, que ainda não saem dali. Minha mãe ajeita perfeitamente todas as flores que ali se encontram. - “O túmulo do meu bebê tem que ser o mais lindo” - disse, em meio à sua tristeza.

O céu está nublado e começam a cair as primeiras gotas de chuva. Agora sim, meus pais e minha irmã decidem irem juntos para casa.

E eu continuo aqui, aguardando a ordem para ir a não sei onde.

Começo a sentir que estou fraco novamente. Posso ver uma luz que se interpõe em meu caminho e me convida a segui-la. É o momento da verdade, penso. Agora acho que vou ver Deus. Começo a caminhar e noto o trajeto repleto das mais lindas flores. Há uma grande variedade delas, todas brilhantes. Sinto que estou voando.

E vou. Agora serei um anjo do Senhor. Já não me dói ser humano. Estou aprendendo a gostar da minha nova condição de vida. Não seguirei mais lamentando mais por ter deixado a terra, pois todos algum dia terão que fazê-lo, o caso é que alguns se adiantam no caminho.

Entro no paraíso. Isto não posso contar. Deus me disse que é um segredo que somente poderão conhecer quando estiverem com Ele. Só posso dizer que é maravilhoso. O paraíso existe, de verdade, eu comprovei. Nos vemos por lá.

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