Tinha nas mãos o poder dos trinta anos de Julia.
E tinha mesmo. Era uma mulher bonita, decente, estudada. Conheceu os melhores restaurantes, as melhores escolas, era fluente em três idiomas. Trabalhava muito e com afinco, era dedicada em tudo aquilo a que se propunha fazer. E com essa mentalidade atraiu as melhores pessoas para sua vida, exceto os amores. Tinha os melhores amigos, mas nunca dera sorte, ou sabe-se lá porque, atraía sempre os piores homens, em especial os “lobos em pele de cordeiro”.
Tinha nas mãos a sedução de Violetta.
Ah, sedutora! Isso ela sabia ser, como Violetta Valéry de La Traviata. Requebrava como ninguém, sabia se fazer notar. Não precisava dizer nada, apenas com o olhar estava a sorte lançada. Todos os homens se encantavam por ela e dançavam ao seu redor, e ela só tinha o trabalho de escolher um. Mas tinha o dedo podre. "Libiamo!"
Tinha nas mãos a volúpia de Rania.
A amazonense Rania, de Milton Hatoum, é perfeita para descrevê-la em capacidade de administração e delícia de mulher que era. Era gostosa, podemos dizer assim. E sabia como ninguém controlar os gastos, os custos, o que e quando comprar, o que investir na empresa. E errou feio quando se permitiu um incesto. Pelo menos é o que conta Omar, seu outro irmão.
Além disso, vinha de brinde o coração frágil de Cio-Cio-San.
Cio-Cio-San foi uma boba que ficara esperando por um Pinkerton que nunca vinha. Mudara hábitos, costume, religião, tudo para agradar àquele que nunca dera valor aos seus sacrifícios. Assim era nossa heroína. A bondade que deste coração fluía era tamanha que não media esforços para ajudar a quem amava. Hoje em dia, arrepia-se a tal ponto quando escuta o nome do último que a fez sofrer que a ereção dos pelos chega a doer e seus olhos ficam marejados.
Fragmentos de um coração bom, mas que se permitiu amar poucas vezes. Como Violetta, seduziu aquele que achava que a faria contente; com a delícia de Rania o conheceu em uma noite; com o coração de Cio-Cio-San entregou o que de mais precioso havia em si. E corroeu-se no ódio quando percebeu que tanto esforço, tanto estudo e tanto sacrifício não serviram de nada. Foi caindo em si, e aos poucos se apercebeu de que estava junto de um psicopata, que tinha prazer em vê-la sofrer. Não agiu como Cio-Cio-San, suicidando-se quando Pinkerton se foi com a esposa americana. Preferiu continuar a vida como Julia. E tinha que perdoar a si mesma pelas atrocidades que permitiu que com ela fizessem.
Julia, sem acento mesmo. A Julia de Honoré de Balzac, aquela que, sem dó nem piedade, chuta o balde quando se dá conta de que a maior besteira que fizera foi se casar sem estar totalmente entregue àquele amor de corpo e alma. Foi bobinha e agora se notou mulher. Precisava e merecia recomeçar.
Amanhã nossa heroína sopra velas, e com elas vem o inconfundível, espetacular e austero poder dos trinta anos de Julia.
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