segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Requiem aeternam

Lux aeterna luceat eis, Domine:
Cum Sanctus tuis in aeternum: quia pius es.
Requiem aeternam dona eis. Domine: et lux
perpetua luceat eis. Cum Sanctis tuis in
aeternum: quia pius es.

Com a força elevada da voz e do espírito, o coral do maestro Ricardo finalizava mais uma apresentação. Era o Réquiem de Mozart, ensaiado para ser apresentado no dia primeiro de novembro, véspera de Finados. Radiantemente feliz pelo dever muito bem cumprido estava o naipe de contraltos, com suas componentes, agregadas e outras moças que estudaram, mas que não puderam participar do espetáculo. A mais feliz delas era Cristina. Depois de permanecer dez anos no soprano, finalmente encontrara sua voz e seu destino, e aquele era o segundo trabalho de grande porte que apresentava.

Junto de Cristina estavam, além das contraltos, Gilberto, namorado dela, o amigo tenor Tiago e uma amiga que não tinha participado da apresentação, Marina. Conversavam animadamente e estavam planejando um almoço em conjunto, para brindar ao sucesso e àquele belo dia de sol. Neste momento, a soprano solista aproximou-se para cumprimentar Cristina e a distraiu da conversa com o grupo. Gilberto, então, aproveitou-se da distração da namorada e disse qualquer coisa a Tiago e Marina, e saiu andando. Cristina pediu para que esperasse um pouco, e ele tocou-a no ombro e delicadamente a retirou do recinto.

Marina não participara da apresentação porque estava atribulada com muitas atividades. Era funcionária de um banco e estudava engenharia. Além disso, lutava há muitos anos contra um câncer, e isso a deixava um tanto quanto debilitada para participar com constância de todas os ensaios, apresentações e até mesmo dos compromissos de trabalho e estudo. Mesmo assim, não deixava de prestigiar os amigos e, por ser contralto, nutria um carinho especial pelas colegas de naipe. Muitas delas amigas, aquelas que estavam com ela a todo momento. Elas sabiam que deveriam aproveitar ao máximo a presença de Marina.

Numa tarde de sexta-feira, vinte dias após a apresentação, Cristina lia seus e-mails e conversava animadamente com seus colegas de trabalho. De repente, algo endereçado ao coral calou a alegria da moça: o maestro Ricardo acabava de comunicar o falecimento de Marina. Cristina, acostumada às risadas e o bom humor da colega, chorou. Ligou para o maestro, que pediu para comunicar a outros membros. Tiago, mesmo inconsolável, conseguiu contar a Cristina a agradabilíssima tarde que todos do coral haviam passado juntos após a apresentação do Réquiem. Aproveitaram ao máximo a presença de Marina, e Cristina não estava lá.

Não acreditando que não fora convidada para este almoço, Cristina perguntou se aquilo fora combinado previamente, e questionando não ter sido convidada ou comunicada. Tiago respondeu que Gilberto foi quem recusou o convite e, achando que tal opinião também traduziria a de Cristina, não insistiu. E tinha certeza de que Gilberto o odiava, e não queria ver a namorada perto do amigo, por isso fizera aquilo.

Lágrimas amargas inundaram o rosto de Cristina.

Alguns dias após a morte de Marina, o maestro convidou os coristas para uma gravação numa rede de televisão. Era a chance que há muito esperavam. Na sala do coral, muitos risinhos, alegria e mais um motivo para a confraternização; e, para variar, Gilberto sempre atrás de Cristina, que já não estava muito bem com ele desde que soubera que ele a privara de estar uma última vez com Marina. Conversavam todos, até que Tiago surge atrás de Gilberto, e faz-lhes o convite:

- Hoje está pedindo um chope!

- Vamos chamar a todos? - pergunta Cristina.

Gilberto interrompe nervosamente a conversa:

- Para onde?

- Para o inferno, Gilberto! PARA O INFERNO! - e saiu, batendo a porta atrás de si, sob o olhar atônito de todos.

No caminho até o carro, o ciumento rapaz dizia o quanto achava Tiago insuportável e inconveniente, devido às suas supostas investidas em relação a Cristina. Ela, revoltada e magoada, bradava-lhe que a deixasse em paz, e que por favor emprestasse por alguns instantes a chave do carro, para que pudesse retirar suas coisas do porta-malas. Gilberto fez-se de desentendido, entrou no carro, abriu os vidros, pediu para que ela o acompanhasse, deu a partida, mas ela somente pedia suas coisas. Ele fechou os vidros, e ela batia com força para que ele abrisse. Deu a volta no carro, batendo então no vidro do passageiro. Ele abriu a porta e disse:

- Entre, Cristina. Precisamos conversar.

- Conversar o escambau! Eu quero as minhas coisas agora!! - dizendo isso, mergulhou dentro do veículo e tirou-lhe a chave da ignição. Nisso, bateu a canela na porta, o que rendeu-lhe um corte e um enorme inchaço. Saiu do veículo e abriu o porta-malas, retirando de lá todas as suas partituras, seus livros e as malas que tinha feito para passar o fim de semana com ele.

Jogou a chave no chão e desceu a avenida a pé, sendo acompanhada de longe por Sérgio, um dos tenores. Quando percebeu que Gilberto já havia se afastado, aproximou-se de Cristina e ofereceu-lhe ajuda para carregar as coisas e acompanhá-la até o ponto de ônibus. Ouviu suas queixas e também achava injusta a forma como Gilberto tratava Tiago, que nunca lhe fizera nada e nem tivera algo com Cristina.

Alguns minutos depois, Gilberto deu a volta no quarteirão. Chamou pela namorada e, ignorando por completo a presença de Sérgio, pegou-a pelo braço, colocou-a no carro e pediu para que conversassem. Ela fez questão de despedir-se antes do amigo, agradeceu-lhe o carinho e seguiu com o namorado.

No caminho, a truculência de Gilberto parecia infindável. Berrava com Cristina, e chegou ao ápice da estupidez quando disse que era com Tiago que ela passava as noites em que ela não atendia ao celular. A moça não pensou duas vezes: meteu a mão no volante e girou. O carro rodopiou e bateu, do lado do motorista, num poste, a 120 km/h. Cristina, atordoada com o choque, olhou para o namorado: o crânio esmigalhado pelo poste e os olhos baços da morte. Aliviada, disse apenas:

- Requiem aeternam, Gilberto!!

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