segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Há tempos

Enquanto preparava as malas, Catarina ouvia música em volume baixo, o suficiente para que pudesse concentrar-se no que fazia. Talvez parecesse mesmo que usara algo que a entorpecia, mas era apenas uma grande e profunda tristeza. Saíra da casa da mãe para viver um grande amor em outro Estado, ao qual não se adaptara.

Os versos de Renato Russo pareciam encaixar-se perfeitamente na situação. Catarina, cabisbaixa, sentou-se à beira da cama, acariciando os dentes de uma escova de cabelos, e pensava na mãe, nos avós, na saudade que sentia das árvores de seu quintal, dos primos com quem conversava e brincava até anoitecer. Agora, sentia-se acuada, cansada, solitária. Sentia que havia jogado fora seu tempo, deixando de viver a alegria da juventude para viver a vida de outrem. O descompasso e o desperdício.

Já não mais sonhava, nem sabia se ainda conseguia. Deprimida, dedicava-se ao desenho quando seu marido não se encontrava em casa. Cuidava do filho de cinco anos porque tinha que cuidar, apesar de amá-lo tanto. Olhava para o sol lá fora, um dia maravilhoso, e fitava seu rosto ao espelho e desistia de sair. Acostumou-se a viver a vidinha tosca que seu marido lhe impusera. É, quem vive de sonhos é só o dono da padaria mesmo.

Sentia uma vontade muito grande de gritar. Gritar, gritar, até estourar os miolos, os tímpanos, as pregas vocais. Gritar até pôr para fora toda a depressão, toda a angústia, toda a sujeição. Sabia que não podia por causa das convenções sociais, por isso não o fazia, então tomou a decisão.

Tinha apenas vinte e três anos, um filho e já era sofrida. O encanto do casamento ausente, os sorrisos enferrujados dos vizinhos, da sogra, dos cunhados. Precisava de abrigo e proteção e sabia que os encontraria somente em seu berço e sua casa. A decisão era deixar tudo para trás e voltar a ser quem era.

Para o marido, disciplina nunca foi liberdade, nem compaixão fortaleza. Ter isso tudo e bondade, para ele, era ser bobo; para Catarina, coragem. E foi dessa coragem que tomou no poço da água límpida de casa. E partiu.

Acariciava os cabelos do filho e pensava no quão grandioso seria o futuro dos dois longe daquele inferno. Desceu, então, no meio da estrada, em Cristalina, de onde podia observar uma parte da Linda Serra dos Topázios. De mãos dadas com o menino, olhava o horizonte e recomeçava ali a sua história.

* Baseado na música "Há tempos", de Dado Villa-Lobos, Renato Russo e Marcelo Bonfá.

2 comentários:

  1. Tirando o Renato Russo, muito bom! rsrsrs

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  2. Concordo com o Amado ...dispenso RR


    mas contemplar o horizonte é a expressão mais verdadeira de contemplar o recomeço ... é de onde o dia e a noite recomeçam a cada ciclo ...

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