sábado, 3 de dezembro de 2011

Navio pirata

- Gooooooooooooooooooooooooooooooooollllllllllllll!! - escuta-se da televisão e em seguida um baque surdo.

- Merda de time! - diz o homem, ao descer um soco no braço do sofá e espalhando pipocas pela sala. Atira-as contra a tevê e continua gritando. - Pipoqueiros! É isso que todos vocês são! Uns pipoqueiros!

- Navio pirata, - diz a esposa.

- Navio pirata?

- É, mãos de gancho, venda nos olhos e um bando de pernas de pau, haha! E só um balaço para afundar!

Pausa para a cara dele: hmmmff!

Não conseguia até hoje, mesmo depois de tantos anos, processar que a esposa torcia para outro time. Quanto mais tentava convencê-la a torcer para o seu, mais ela ia ao estádio com a galera do time dela. E ela ia mais ao estádio que ele. Nunca discutiram por causa do futebol e até apoiavam o time um do outro se fosse o caso. E quando os dois times se enfrentavam, nem conversavam. No estádio, cada um na sua torcida, e sem comentários depois do jogo - regras estabelecidas desde o tempo do namoro.

O time dela não era de tanto prestígio da mídia, embora fosse mais antigo. Então ela acompanhava pelo rádio quando não transmitiam pela tevê. Certa feita, houve uma partida simultânea de ambos em cidades diferentes. Estavam em casa, ele assistia ao dele enquanto ela escutava o dela. Em um dado momento, o time dele tomou um gol, ao mesmo tempo em que o dela fez um. Obviamente, ela gritou de felicidade. E ele, achando ruim:

- Por que você está festejando o gol, hein?

- Ah, vá se ferrar! Foi gol do meu time, ora!

Rosnaram um para o outro e assim seguiram as partidas: o time dele perdeu e o dela empatou. Normal e esperado para aquele campeonato de piratas, como ela mesma dizia.

Embora tantas outras cenas engraçadas tenham sido protagonizadas pelos dois, a esposa sentia que ele preenchia seu vazio com o futebol. Não sabia exatamente o que era, parecia uma frustração de longa data. E, no fundo, até torcia contra o time dele, não por serem oponentes, mas porque sabia que o marido precisava se desencantar com aquilo, que perder e empatar fazem parte do esporte, e não era quebrando o braço do sofá que os piratas iam ganhar, tampouco o presidente do clube iria pagar seu cardiologista. Ela não sofria porque sabia o que esperar. Ele sofria e personificava o verdadeiro significado de torcer: a camisa na mão, torcendo-a exasperado.

Mais um clássico e lá se vão os dois de novo para o estádio. Cada um na sua torcida, mais uma vez. A torcida do time dela ocupava dez por cento do estádio, o dele os outros noventa. Sem muito brilho no primeiro tempo, jogadores vão para o vestiário carregando um 0 x 0. Nas arquibancadas, unhas roídas dos dois lados. Já o casal podia se ver, pois estavam próximos das grades que separavam as duas torcidas. Mandavam beijinhos um para o outro.

Começa o segundo tempo e a coisa vai ficando mais tensa. Aos quarenta e dois minutos, o único gol da partida foi comemorado até com lágrimas pela pequena torcida. Aponta o centro do campo o juiz, final de jogo. Davi 1 x 0 Golias. Um jejum quebrado.

No estacionamento, ela radiante após a vitória; ele arrasado, a derrota estampada na cara e com a nítida sensação de que sua camisa perdia o brilho. Ambos se entreolhavam enquanto os outros torcedores iam passando por eles. Mal podia acreditar que depois de tantos anos o time da esposa fora capaz de vencer o seu. Imaginou, nesses dez metros que o separavam, que ela iria dizer tudo o que ficou entalado na garganta durante este tempo. Que iria rir da sua cara, que lhe faria gracejos pelo resto da semana.

Ele sorria sem graça. Não aguentaria ser zombado. Travava um conflito interno enorme: não queria que fosse a primeira vez que ia discutir com a esposa por causa do futebol, mas se ela fizesse alguma gozação... Não, não podia pensar nisso. Continuava olhando a esposa, sem coragem de se aproximar. Tremia, pensando no que será que ela falaria, não queria brigar com ela. Mas estava revoltado. O time dele perdeu e agora ele estava nas mãos dela.

Alguns torcedores pararam para ver a cena, as camisas distintas se encontrando ali fora, prontos para apartar uma possível confusão - ou tomar parte dela. Fotógrafos e polícia a postos. Ela, mesmo sorrindo marotamente e louca para rir, então, tomou coragem e foi se aproximando dele. Deu-lhe um beijo demorado, secou-lhe o suor da testa com a faixa que ele trazia na mão e disse:

- Vamos para casa. Hoje você merece uma massagem.

- Você não vai rir de mim?

- Não. Amanhã vou rir com você quando, no lugar desse navio pirata, esta nossa foto for eternizada na capa do caderno de esportes.

sábado, 16 de julho de 2011

Ana Rosa

No metrô de São Paulo, cansada de mais um dia de trabalho, assento-me numa cadeira isolada, na lateral de um banco duplo, que estava vazio. Na estação da Sé, entram duas moças e ocupam esses dois lugares.

Voltei à realidade ante a beleza das meninas. Comecei a prestar atenção na conversa e nos gestos. Eram um casal, ambas bem vestidas, de botas, jaquetas de couro, uma de cerca de um metro e setenta e cinco, a outra um metro e sessenta. Seriam um casal como outro qualquer, se não fosse por um detalhe: uma delas usava um lenço na cabeça. Elas estavam voltando de um hospital, em que esta fazia um tratamento contra um câncer.

O lenço era bem colorido, diga-se de passagem. Amarelo, azul e rosa. Lindíssimo. Deu um destaque todo especial à indumentária da jovem. A mais alta, que havia ido buscar a namorada no hospital, era toda sorrisos. Olhava a companheira com ternura, acariciava-lhe a face, tocava-lhe o queixo. E começou a contar piadas, fazendo com que a pequena de lenço se esquecesse de todas as dores e começasse a rir. E falou que agora é que ela estava fina, porque o lenço combinou com a roupa. E que tinha em casa outros lenços bonitos que tinha escolhido especialmente para ela.

A pequena ria deliciosamente. Momentaneamente mergulhou na alegria da namorada, que não se continha de tanta felicidade. Ela tinha ido buscá-la no hospital depois de um dia chato de consultas, retorno, tratamento, remédio, médico, toda essa rotina cansativa e trabalhosa. Essa rotina de uma luta árdua que muitos travam todos os dias, e aquele casal estava ali, na minha frente, me dando uma lição de apoio, superação e amor. Acho que em dado instante até cheguei a ser inconveniente, porque se calaram num momento em que eu as contemplava. A verdade é que eu estava em êxtase.

As meninas desceram na estação Ana Rosa. Ana e Rosa. Seria apropriado chamá-las assim, já que eu não sabia seus nomes e pela coincidência da estação em que saltaram. A mais alta abriu o braço direito e o ofereceu à namorada de lenço na cabeça. Fez-lhe, então, um carinho no lóbulo da orelha e logo sumiram da minha vista na escada rolante. Mal sabiam elas que ali permaneci observando-lhes o tempo todo e que deixei escapar uma lágrima. 

O metrô seguia, então, seu caminho no sentido Jabaquara. Meu coração estava disparado, minha pele arrepiou. Foram poucas as vezes na vida que vi tamanha prova de amor.

É bem verdade que o amor tudo crê e tudo suporta. E sobretudo emociona.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Por que escrevi teu nome no espelho

Ganhei de dia dos namorados letrinhas vermelhas de gel com a inscrição "te amo" e um coração.

Aquelas letrinhas me fizeram divagar um bom tempo. Examinei cada uma delas antes de colar num espaço muito especial. Fiquei pensando: onde poderia pregá-las? Como poderia fazê-lo sem que ficasse escandaloso?

Não, o problema não é que eu não queira admitir que te amo. Nada disso. Na verdade, te amar é um sentimento tão doce que só quem se aproxima e se interessa em me conhecer de verdade, sem me julgar, é que poderá ler em meus olhos o quanto a tua presença me faz feliz. Amor não foi feito para ser escandaloso, por isso te amo com a serenidade e o silêncio com que se contempla um amanhecer.

O guarda-roupa é uma peça tão íntima, que conta tanto da história de alguém... Quando cheguei com as letrinhas na mão e parei defronte a ele, fiquei pensando: é, este aqui é o meu coração. É aqui que ficarão estas letrinhas. Abri, então, a porta do meio, onde fica um espelho.

Espelho que é, neste meu coração, o símbolo dos teus olhos, que refletem a paz do teu abraço e a alegria de ser tua.

Espelho que reflete nos teus olhos tudo o que sou e que passei a ser desde o instante em que comecei a te amar.

Enquanto pronunciava teu nome, na ordem fui escrevendo "te amo", colando as letrinhas vagarosamente no espelho. Interessante que fiquei observando outra coisa, enquanto lia a embalagem: o gel é lavável, como o amor. É legal, porque se renova, aí tira a poeira e brilha de novo.

Meio sem jeito, as letrinhas saíram uma a uma da embalagem. Escrever "te amo" no espelho foi o mesmo que escrever teu nome nos meus olhos e para sempre no meu coração.

sábado, 14 de maio de 2011

Teu corpo

Durante a tempestade procuro teu abrigo
No calor dos teus braços me sinto segura
Tenho tantos espaços com tanta brandura
Tua pele, felicidade do teu conforto amigo.

Conforta-me saber que conto contigo
Tua voz, desembaraço, é toda candura
Dormindo és anjo de abraço, és cura
A escutar-me, a ver que se passa comigo.

Em teu sorriso escorro e a palavra de ouro
É voto vindouro e em que dispenso zagorro:
Tanto fastidio é em ti que eu esqueço.

Quando tenho frio é aí que me aqueço, 
É onde eu morro e contenho meu choro,
Teu corpo é para onde corro e peço socorro.

domingo, 1 de maio de 2011

O amor é verde

Vasculhando as minhas coisas há alguns finais de semana, encontrei meu livro de escola da primeira série. O ano era 1987 e lá estava na contra-capa: "Glaucia Regina Piazzi, 1ª série, sala 7, professora Clêmides". O quarto capítulo era sobre a letra c, fonema /k/, com o lindíssimo poema "Colar de Carolina", de Cecília Meireles. E o livro era bacana porque não só explicava letra e fonema, como também suscitava discussões sobre o tema do capítulo. E o tema deste era "cores".

Ah, vocês não sabem a alegria com que olhei a minha letra, do tempo em que era redondinha, mas já rebelde, porque a professora dizia que deveríamos escrever uma palavra por completo para só depois colocarmos seus respectivos sinais gráficos. O v de todo mundo fazia uma voltinha antes, o meu já começava sem ela, fosse maiúsculo ou minúsculo. A pergunta do livro era: "que cor você acha que tem o amor? Por quê?" E a minha resposta foi, com o V sem voltinha: "Verde. Porque simboliza muita esperança." 

Caramba, hoje eu tenho noção da profundidade da minha resposta: uma criança de sete anos dizendo que o amor é verde porque é esperança, e é mesmo! A gente chora, quebra a cabeça, mas segue acreditando que um dia vai encontrar alguém (ou algo) bacana para amar, toma outra traulitada, se decepciona e depois encontra outro e o ciclo recomeça. Sim, tem um pouco de paixão neste conceito. Mas o amor está é dentro de nós. Nós é que oferecemos o amor a outrem. Nós é que acreditamos ser capazes de transformar o mundo com a força do nosso amor.

Hoje fui ao supermercado usando a camisa do América. Não sei por que cargas d'água todo mundo ficou me olhando. Mentira, sei sim. É porque ontem meu time perdeu para o Atlético Mineiro, de virada, por 2 x 1, e assim mesmo eu vesti a camisa e saí. E o que é isso senão amor? Torcedor de qualquer outro time ficaria invocado e não vestiria o manto no pós-derrota. Nós não. Não sofremos justamente porque amamos, porque temos esperança, porque conhecemos o time para o qual torcemos. Não sofremos porque no amor não há espaço para dúvidas. E eu não tenho dúvidas de que o meu amor é verde.

O jogo de ontem foi ótimo. Não pelo resultado nem pelo esquema tático (qual?), mas pela história que rendeu. Já viram americano em delegacia? Pois é, fomos a uma ontem, e fazendo festa, porque realmente é inconcebível e incompatível um torcedor cuja camisa é atestado de boa-fé em todo o território nacional ser preso, ainda mais por desacato. O pior: o desacato não ocorreu, quem mandou o torcedor ir à p*ta que pariu foi o policial. Vai entender... E, enquanto aguardávamos a liberação do nosso motorista para voltarmos a Belo Horizonte, conversávamos sobre quem é o torcedor americano. 

A torcida é pequena e acaba que todo mundo meio que já se conhece. Foi engraçado quando surgiram duas meninas bonitas lá no meio e o pessoal se perguntou: quem são? Imediatamente começamos a rir da nossa constatação, dizendo que somos tão família que quando surge alguém novo por lá a gente logo percebe e fica instigado a conhecer. A propósito, nós, meninas, não tomamos mãozada lá no meio da galera!

Até a polícia não precisa mover uma palha para nos conter. Não há necessidade. Se existe uma corda de isolamento entre a arquibancada e o alambrado, é para que nós não a ultrapassemos. Compreendemos a instrução conforme é dada. Xingamos, gritamos, berramos palavrões como qualquer outra torcida (berrar palavrão é terapêutico!). Mas ultrapassar os limites da boa educação, isso nunca. Já disse e repito, a história da delegacia foi algo totalmente inusitado e a coisa mais non sense que já vi acontecer na torcida do América.

E os veículos nos quais nós americanos chegamos? Todos limpos e organizados, alguns mais simples, outros mais pomposos. Mas garanto a vocês que um Chevette vermelho, tocando funk em 2 milhões de watts PMPO (Potência Musical Para Otário, eu diria), rebaixado, com dois aerofólios - um no teto e um no porta-malas - não pertencia a nenhum torcedor alviverde.

A gente tem paixão? Claro que tem, é aquele conceito que falei ali em cima. Mas paixão sozinha não sobrevive. Ela precisa do amor, pois ele é o alicerce para que ela seja consciente e não soframos. Paixão sozinha é burra, ela tem que ser não o prato principal, mas sim o tempero do amor. Nós americanos apanhamos, mas continuamos amando esse time mesmo aos trancos e barrancos. Deve ser porque o amor é algo que vem de dentro de cada um de nós e com ele acreditamos e temos a esperança da renovação.

Por isso saí com a minha camisa assim mesmo. Ser cruzeirense ou atleticano em Belo Horizonte não faz diferença, ninguém liga. Mas americano não. Gosto de ser notada. Adoro ver a cara de espanto ou de admiração de desconhecidos quando estou usando o manto verde e negro. Gosto quando gritam "Coelho!", o time tendo perdido ou ganhado eles falam nosso nome. Ninguém briga conosco. Somos de paz. Aceitamos as brincadeiras e respondemos numa boa. Temos tudo o que é necessário para um bom torcedor: classe, paz, paixão e amor.

Falem o que quiserem. Só nós somos decacampeões. E o amor é verde.

Me explica...

Que pele é essa pela qual eu sou louca, macia de tanto carinho ou de tanta ternura?
Que boca é esta que me convida a conhecer seu mundo, que me deixa no céu com seus beijos maravilhosos?
Que mãos são estas, que me deixam parada, esperando de olhos fechados o próximo eriçar de pelos?
Que abraços são esses que me acolhem por inteiro, e me fazem crer que o mundo lá fora não existe?
Me explica... que coisa é essa que me faz querer você?

sábado, 30 de abril de 2011

Sábado babaca

Sábado cilada
E a bacaba acaba
Faz-se baciada
E acaba mais nada
A sílaba apaga
A cada agarrada
A garrafa acaba
Se acaba o sábado
Se acaba a ressaca
Se larga na tarrafa
Se abarca em Reñaca
Sábado se acaba
Sábado babaca
Acaba-se a bacaba
Apaga-se a garrafa

terça-feira, 5 de abril de 2011

Solitários na rede


Somos lo que somos
Y nos entendemos a lo lejos
Somos los que somos
Desunidos
Pero queremos amor

(Beto Cuevas - “Hablame”)


O amazonense Roosivelt Pinheiro me tocou o coração com uma obra intitulada “Solitário na/da rede”, e tive a oportunidade de admirá-la em Belo Horizonte e em São Paulo, com a mesma emoção e o mesmo arrepio ao interpretá-la. A montagem consistia em materiais extremamente simples: uma mesa, uma cadeira, uma tarrafa e pedras. Redes menores suspendiam-nas, uma a uma.

Cá estou eu escrevendo como se fosse a tarrafa da obra. Toda embolada, cheia de areia, casquinhas, conchinhas, restos de anzóis e cheiro de peixe. Uma rede complexa envolvida por outra mais simples. A areia que deixo cair como meu rastro; as casquinhas que vão se soltando de qualquer coisa são lascas de madeiras de barcos, remos, tinta, lixo, das quais vou me desfazendo aos poucos; conchinhas que guardam com carinho o barulho do mar e as vozes que ouço e que imagino; restos de anzóis por coisas que ainda me fisgam o coração; minha eterna “amazonice” representada pelo cheiro de peixe. Não, eu não cheiro a bacalhau, apesar de a tarrafa da obra ter sido usada no mar.

Sentada na cadeira e com meu computador na mesa, eu tarrafa envio à rede mais simples minhas mensagens, ideias e ideais. Falo com pedras. Sou uma solitária na rede, fazendo do meu ciclo virtual algo real e presente.

Creio que muitos dos que convivem nesse ambiente comigo se sintam da mesma forma, isolados e até hostilizados. Mas, sabe, às vezes ficar no virtual é mais interessante que no real. Apesar de na rede você poder ser quem você quiser, o real ultimamente está até mais superficial, as pessoas não querem saber de sonhos, de conhecimento. Não querem saber do amor, do tempo e da construção. Querem o tórrido romance e para ontem. Não se importam se você sofre, você tem que produzir.

Ouço música de tudo quanto é canto do mundo, graças a essas pedras, os amigos virtuais. Eles são outras tarrafas que me ensinam suas culturas. Ao aparecer, sou uma pedra a mais para eles. E é engraçado como há uma interseção no que falamos, as primeiras conversas sempre têm o mesmo conteúdo: por que uma pessoa legal e interessante como você está sozinha? E a resposta também é sempre a mesma: não encontrei quem desse valor a sentimentos verdadeiros. Estamos todos à procura de amor. Real.

O virtual é o campo das ideias, assim como também das fotos e filmes, mas o cheiro e o tato é algo que a rede ainda não permitiu. A amizade começa e fica, mas os abraços, beijos e mesas de boteco dependem da nossa imaginação. Enquanto isso seguimos à procura do amor, vamos sendo tarrafas recebendo mais e mais informação de outras tarrafas, tão complexas umas quanto as outras.

Somos o que somos e nos entendemos de longe, desunidos, mas o que queremos mesmo é amor.

(2010)

sexta-feira, 18 de março de 2011

Do trânsito, da humildade e do perdão

O trânsito de todo dia é um verdadeiro exercício de paciência, humildade e perdão.

Paciência todo mundo já sabe o porquê. Ficar parado horas e horas numa fila interminável para descobrir que lá na frente é só uma pobre alma trocando um pneu geralmente irrita qualquer um. Irrita mais ainda quando se percebe que não é nada, só um sinal vermelho, aí o sujeito que está ao volante fica pensando: antes fosse um trocando pneu! Ao menos seria justificável!

Ah, mas as pessoas nunca estão satisfeitas mesmo. Vivem na pressa, correria, exigem que os outros saiam mais cedo, mas também não saem mais cedo. Lotam as ruas de carros, motocicletas, cada um querendo passar por cima do outro porque tem mais pressa que o outro. Além de tudo, uma atitude pouco sustentável, não é mesmo? Existe transporte coletivo e leva-se o mesmo tempo para chegar ao destino e gasta-se muito menos dinheiro.

Humildade. Essa palavra anda esquecida do léxico de boa parte das pessoas. E sabe por quê? Porque elas têm tanta pressa em receber a informação e interpretá-la que acabam, como no trânsito, atropelando o real sentido dela. Não tem nada a ver com se humilhar, se rebaixar, mas sim resignar-se e aceitar sua condição humana, de que erra mesmo e que tem que admitir isso. Só que também a pressa e o egoísmo são carregados nos corações antes de qualquer outro sentimento. E vem sempre o pensamento: eu é que não vou me humilhar para o outro e pedir-lhe perdão. Ele que venha. Ele que me provocou.

Perdão. Outra palavra que já foi mais pronunciada também. Sujeito fechou você? Perdoe-o. Você sabe o que está fazendo no seu volante. Mas já imaginou se o sujeito ali na frente está passando por algum problema que o fez se distrair e ele acabou entrando daquele jeito? E, mesmo que ele tenha feito de propósito, perdoe-o. Não corra atrás do cara para "dizer-lhe umas verdades". E se foi você que fechou alguém, escute a buzina e siga seu caminho, não vá fechá-lo de novo.

Aí vocês bateram um no outro. Não tomem seus veículos como extensão de seus corpos, afinal vocês estão vivos e deem graças por isso. Perícia existe é para isso, verifiquem quem deve pagar, paguem e cumprimentem-se. Vão em paz para casa.

Do trânsito para o lar. As pessoas deixam o volante e esquecem também que têm uma vida para dirigir. Agem em suas vidas como se ainda estivessem lá fora, entre faróis, placas e semáforos. E a pressa que se transfere para o cotidiano não deixa com que se carreguem a calma e a serenidade necessárias para estar entre os semelhantes. Então acontecem as brigas, a intolerância e o infindável ciclo de que se o outro quiser que eu o perdoe, terá que vir até mim primeiro. Assim nasce o rancor.

Rancor é uma palavra que por si só é feia. Lembra ranço. E, se pensarmos bem, é um ranço mesmo, um sentimento pesado, mal cheiroso, que encobre o coração de manteiga que deveríamos ser. Rancor é amargo e sempre acaba em solidão. De novo: não tem nada a ver com se rebaixar ou chorar (e até mesmo rir) com qualquer coisinha. Guardar rancor só faz o coração ficar enferrujado e duro, e é para isso mesmo é que serve o perdão, que não é só um ato de amor e grandeza, mas também de sensatez.

Digam-me: que graça tem tirar a paz do outro? Acaso se o outro está perturbado a paz dele vem para você e você se sente bem? Acho que não. É sensato perdoar porque, além de ficarmos em paz, também damos paz ao outro. Puni-lo porque cometeu um erro e já se retratou não faz sentido. Todos erramos, não importa o grau do erro. Não julgue, simplesmente ponha-se no lugar do outro. Às vezes ele está passando por algum problema e você é somente o cachorro que ele chutou quando chegou a casa após ter ouvido umas do chefe, que por sua vez ouviu de outro. Releve e re-leve: renovar-se e ficar leve após passar por cima dessas picuinhas.

Cada um de nós dirige um carro delicioso chamado vida, e nele estamos de passagem. Existem alguns que bebem mais, outros são mais econômicos, há os que têm inúmeras funções e outros são simples 1.0, por isso mesmo levaremos conosco somente as sensações de dirigi-lo. Cada um cuidando com carinho do seu carro e abrindo a porta com educação - e sensatez - para quem quiser entrar o mundo será melhor, porque viemos dirigir nessa estrada projetada por Deus para sermos felizes. Então, que tenhamos a liberdade para manejar o câmbio e os recursos que nossos veículos nos oferecem, e aceitar e amar os outros veículos que cruzam o nosso caminho assim como eles são.

Estão nas ruas os viadutos para provar que podemos passar por cima das vias de trânsito rápido e também por cima de coisas pequenas. Estão os trevos que mostram que é possível entrelaçar os nossos caminhos sem atropelos e aguardando nossa vez. Estão lá as placas regulamentadoras dando as regras de convivência e as de advertência para mostrar as curvas perigosas, os entroncamentos, as confluências e intersecções com as vidas que estão ao nosso redor. Eis também os radares para nos lembrarem que excesso de velocidade em resolver a vida naquele minuto não serve para nada a não ser tomar uma multa, que pode ser traduzida em dor de cabeça física, psicológica e falta de diálogo com o semelhante.

Dirija em paz. Não estou falando do seu carro, mas sim da sua vida. Dê paz ao outro. Desculpe. Perdoe. Ame. Seja leve, tire o ranço/rancor do coração. Não é à toa que "doar" é parte da palavra "perdoar". Doe-se.

segunda-feira, 14 de março de 2011

La propuesta

Ele

Finalmente entendo
Todo o sofrimento
Destes meus caminhos

Linhas tortas e incompletas
Por Deus escritas certas
Pra me deixar em desalinho

Mas agora vem o alento
Pulsando em chamamento
Pra andar no teu caminho

O que era praia deserta
De passos ficou repleta
Pegadas onde me aninho

Se sofri foi pra aprender
Com o desamor desta vida
Para enfim pronto, no ponto
Conhecer minha elegida

Casa comigo?

Ela

De caminhar, repletos de bolhas estavam os pés
Vacilante, ainda procurava o sabor da vida
Buscava num emaranhado jogo a sorte ou o revés
E então surgiste, já de coração sem ferida

Chegaste num momento em que eu passava através
De campos desérticos e no asfalto rendida
Ah, meu anjo, quanto me doíam os pés
Da caminhada em vão que me deixou perdida

Daí vieste como quem não quer nada
Me tocaste a alma, o espírito e o peito
E da tua água bebo, está meu nó desfeito

É por isso que me entrego descansada
Serena e feliz porque agora és meu eleito
E, portanto, se me queres, te digo: aceito!

terça-feira, 8 de março de 2011

Viagem

Viajei voando para ver o que você vendeu
Vendeu paisagem, vendeu imagem
Vendeu casa, vendeu vida
Vendeu a voz
Tudo pela bagatela de um conto de poesia
Nada mais

* Inspirado no poema "O Vento", de Grace Piazzi, disponível em http://cafeinaacida.blogspot.com/2011/03/o-vento.html

quinta-feira, 3 de março de 2011

Ansiedade

Pelo amor de Deus amor faz mais de uma hora que você ligou e até agora não desceu desse ônibus ah tá parado na estrada tá lanchando tá fazendo qualquer coisa mas vem logo porque eu quero muito muito muito te ver parece que o tempo não passa nesta rodoviária meu Deus cadê você ah que bom está descendo venha logo estou te vendo não desapareça da minha vista venha ao meu encontro porque é nesta hora que eu pulo no teu pescoço e te encho de beijos.


(Pronto, Mônica, agora respira!)

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Carnaval

quando em fevereiro você despontar
a sua mão eu vou tomar
para cada passo desta vida
vou te levando a sambar
na esquina da minha avenida
tou te esperando que é para te falar
que vou para o meio da rua
tou debaixo da chuva
que é para me molhar
se chover no carnaval
a gente vai para a rua se beijar
se beijar até cansar
até no corpo a roupa colar
e quando cansar
a gente vai para casa
vai se ardendo em brasa
até o dia clarear

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Voz de sol

- Bom dia, dona Rosa!

- Bom dia, menina doutora! A senhora 'tá boa?

- Eu estou ótima! A senhora está com tempo hoje? - brincou. - Queria anotar aquelas quadrinhas que a senhora recitou semana passada. Achei tão lindas!

- Ah, sim, eu posso.

- Então está bem, vou lá dentro fazer as minhas anotações e volto logo.

Márcia, a fisioterapeuta, acabara de chegar naquela manhã ao asilo em que trabalhava havia pouco tempo. Cumprimentou dona Rosa, uma das internas, e como de costume, a velha e cega senhora sempre recitava uma quadrinha. Na semana anterior, dona Rosa havia recitado uma série delas sobre a natureza e o que o homem vinha fazendo com ela, o que encantou Márcia, pela expressividade, emoção e principalmente a criatividade, já que muitas vinham naturalmente como para os repentistas. A fisioterapeuta entrou então na sala de enfermagem e começou a fazer anotações. Fazia o planejamento terapêutico de cada um dos internos e os acompanhava em suas dificuldades de movimento e equilíbrio.

De repente, uma auxiliar de cozinha invade a sala de enfermagem e grita:

- Doutora, pelo amor de Deus! A dona Rosa 'tá passando mal!

Márcia não teve tempo de pensar muito. Além de uma enfermeira, era a única profissional de saúde que estava na casa naquele momento. Largou as anotações sobre a mesa e foi em disparada ao pátio onde, cinco minutos atrás, dona Rosa estava tomando sol. Ao chegar, viu dona Rosa caída no chão, com a respiração pouco ritmada, quase ausente, lutando pela vida. Ligaram para a emergência.

Estetoscópio. Esfigmomanômetro. Coração.

Cada segundo era precioso. Enquanto o serviço de emergência não chegava, a fisioterapeuta e a enfermeira começaram uma corrida contra o tempo, um ritmo frenético, rasgando com uma faca a blusa e o sutiã da senhora, e alternando-se entre massagem cardíaca e respiração boca a boca. A auxiliar de cozinha trouxe um espelho de Glatzel, para conferir se a senhora ainda respirava. O halo que se formava com o ar era cada vez menor. A respiração cada vez mais fraca. Dona Rosa a cada momento mais distante.

Estetoscópio. Espelho. Coração.

Foram exatos dezoito minutos que se passaram em dois. Ao mesmo tempo, os mais longos da vida de Márcia, que nunca tinha visto alguém morrendo. A sensação ímpar de impotência. A vida escorrendo por entre seus dedos.

Coração.

Finalmente, a velha senhora sucumbiu. As duas profissionais se levantaram e contemplaram, em silêncio, o cadáver por alguns minutos. A emergência então, chegou, e, nada mais havendo a fazer, registrou-se o óbito. Márcia buscou um cobertor e, junto com a enfermeira, improvisou uma rede. Carregaram o corpo para o quarto de dona Rosa, deitaram-na em sua cama e lhe cobriram com um lençol.

Por duas vezes Márcia voltou ao quarto e observava o corpo inerte. Da primeira, levantou o tecido e fechou os olhos da senhora. Da segunda, sentou-se ao seu lado e pensava. Pensava. As quadrinhas. A vida. Cinco minutos. Que manhã, meu Deus! Depois de tanto esforço, finalmente estava mais calma, mas ainda em choque. Foi para casa. Não conseguiu almoçar, não conseguia falar. Passou o resto do dia sentindo dores de cabeça e de estômago. Enquanto isso, a administração do asilo foi comunicada, tomando todas as providências para o enterro no dia seguinte.

Márcia fez vômito por toda a noite. Conseguiu dormir lá pelas cinco da manhã. Acordou passando muito mal ainda, e mesmo assim foi ao cemitério, embora todos lhe dissessem que não fosse. Mas tinha que ver o corpo de dona Rosa baixando à sepultura. Precisava acreditar que tudo estava terminado, e só vendo as coroas de flores sobre o túmulo e aquela caminhada silenciosa da saída de um funeral é que teria a certeza de que fizera sua parte.

No cemitério, o enterro foi sem aqueles antipáticos e falsos discursos, com pouca gente, só os administradores e os profissionais de saúde do asilo. Apenas o padre falava, encomendava o corpo e fazia as orações necessárias. Márcia estava próxima dos pés de dona Rosa. Olhava sua face serena e pensava em tudo que dona Rosa lhe contara sobre sua vida. Interessante pensar que nem todo mundo em asilo é abandonado, porque esta é a primeira ideia que vem à cabeça das pessoas. Ali a velha senhora estava porque lhe faltava companhia e alguém que cuidasse dela. Um glaucoma não tratado a deixou cega e, sozinha no mundo, para onde iria?

Cerrado o caixão, a fisioterapeuta acompanhava em silêncio a descida do ataúde. Um gaiato comentava ao seu lado, sem saber de quem se tratava:

- Dizem que ela morreu nos braços da fisioterapeuta.

Márcia, irritada, respondeu, sílaba por sílaba:

- Moço, pelo amor de Deus, fica quieto!

O homem ficou sem jeito e se afastou, assim como as outras pessoas. Márcia ficou sozinha e sentou-se no chão. Saiu dali só depois de cada pá de cal e cada punhado de terra posto em seu lugar, assim como todas as coroas de flores organizadas sobre o túmulo recém coberto. Não chorava. Não reagia. Apenas seu estômago acompanhava o movimento com revoluções que a deixavam pior. Levantou-se e caminhou devagar até a saída do cemitério, onde vomitou mais uma vez. Tomou um táxi e foi para casa, pediu à mãe um remédio para o estômago e outro para dormir e desvaneceu no sofá.

Como era de se esperar, sonhou com o dia pesado que teve. Ouvia dona Rosa recitar as quadrinhas, mas não conseguia guardá-las, não podia anotá-las. A senhora estava feliz. Feliz como era em vida. A velhice não é tão ruim como muitos pregam. E dona Rosa era, sim, muito feliz, porque tinha um sol, um sol que lhe aquecia e que tinha voz. E com essa voz de sol é que se aproximou de Márcia, num campo muito verde, para dizer-lhe muitas coisas. A jovem não conseguia definir muito bem o que dizia, só ao final conseguiu escutar, ao ser tocada no ombro pela senhora. Passando as mãos através do cabelo de Márcia, dona Rosa disse:

- Menina doutora! A senhora é tão nova... ainda falta muito para entender tudo. Falta muito para entender o que é o amor, o que é ter alguém ao seu lado. Eu fui para o asilo porque já não tinha família de sangue. Meu útero seco só pôde gerar uma filha, minha única filha, e que morreu junto com meu neto num acidente. Meu marido, depois de tantos anos, também morreu, era a hora dele. Chega a hora de todo mundo um dia. Mas eu vivi sim, menina. Sei que você tentou. Não se preocupe, eu estou bem, era minha hora mesmo, não se sinta culpada. E eu sinto o sol, como sentia quando você se aproximava. Sei do seu carinho, menina. E sei também que lhe falta alguém que a ame que não só os seus pais. Do jeito que você é, só alguém que tenha asas na alma. Que seja seu sol, de quem você sinta o calor. Ah, menina Márcia! Eu queria apenas ter visto mais vestígios de sol! Mas fiquei cega, e só pude sentir seu calor. Calor igual de abraço. Apesar de sentir, sol a gente não ouve, né? Do meu marido eu ouvia sim. Todos os dias ele me dizia que eu era linda.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Batom líquido

Há uma história da minha infância de que eu gosto muito, que foi quando eu comecei a gostar de maquiagem. Achava bonito as mulheres se pintando, queria imitá-las. Pegava os sapatos de salto da minha vizinha adolescente e ficava horas brincando com eles. Os batons, gastava-os todos. Adorava me olhar no espelho e desenhar com lápis a pinta no rosto de Marilyn Monroe, ou a pinta na perna de Angélica. Imaginação infantil flui fácil.

Era a primeira vez que eu via um batom líquido. Fiquei encantada com o pincelzinho de espuma, corri ao espelho para experimentar. Minha vizinha logo viu que seria difícil retirá-lo das minhas mãos e, por isso, não questionou quando pedi para ficar com ele. Desci as escadas feliz com o pequeno mimo e fui procurar o que fazer entre as árvores do jardim do prédio.

Pus o batom no bolso e fiquei circulando pelo pátio vazio. Eram quase quatro da tarde de um julho frio e estranho. Sendo um mês de férias, era esquisito olhar para aquele local deserto, sem crianças, todas recolhidas em casa. Havia um vento deliciosamente gélido, mas que, para os outros, era cortante; eu gostava. Continuei andando despreocupada e balançando sozinha nos galhos das árvores.

Não deu muito tempo, lembrei-me do batom no bolso, peguei-o e comecei a examinar a embalagem. Achava o máximo aqueles nomes complicados e compridos, os quais eu mal conseguia pronunciar sem trocar ao menos duas sílabas. Fazia isso com tudo quanto era produto, era uma divertida brincadeira de trava-língua. Fiquei, então, lendo o rótulo do batom, sem me dar conta de que estava sendo observada. De repente, me deu uma vontade enorme de fazer xixi, e eu sabia que não ia dar tempo de subir as escadas de volta para fazer qualquer coisa em casa. Procurei um lugar relativamente seguro, onde não pudesse ser vista. Agachei-me numa valeta de águas pluviais que passava nos fundos do pátio, era oculta pelas árvores e dali eu poderia observar o movimento.

Quando levantei para colocar minha calça de volta, tomei um susto tão grande, meu estômago gelou e o sangue sumiu da minha face. Eu estava sendo observada o tempo todo por um homem magro, moreno, que usava costeletas e tinha os cabelos quase raspados, vindo com um cão da raça pastor alemão. Ele se aproximou de mim, e eu, trêmula, não sabia o que fazer.

- Oi, garotinha!

Terminei de arrumar a minha calça e respondi, sem olhar para ele:

- Oi...

- Você estava fazendo xixi...

- Sim, eu estava.

- Hmmmm...

Eu estava com o batom nas mãos. Tremia feito uma vara verde. Se eu corresse, fatalmente ele soltaria o cão da coleira e este me atacaria sem o menor problema, já que ele era maior que eu.

- Dá licença, moço?

- Para onde? Deixa ver isso que você tem nas mãos.

Abri a mão e mostrei o batom.

- Posso passar no cachorro?

- Onde???

- No negócio do cachorro, ó... Sheik, mostra o negócio!

O cachorro obedeceu a ordem (!) e deixou o pênis à mostra. Fiquei apavorada.

- Deixa eu passar esse batom no cachorro...

- Moço, esse batom não é meu. Me devolve.

- Como é o seu nome?

- Talita.

- Quantos anos você tem?

- Sete.

- Você é linda, Talita. – e passou a mão pelo meu rosto.

- Moço, me devolve o batom, por favor.

- Só se você deixar eu passar no cachorro.

- Não.

- Então você vai ter que mostrar a sua florzinha para ele.

- O quê????

- Sim, a mesma florzinha que vi quando você estava se levantando e arrumando a calça. Ou mostra para ele ou eu não devolvo o batom.

- Moço, por favor... – comecei a chorar compulsivamente.

- Talita, que linda... – e passando a mão pelo meu rosto, eu tremia de desespero. Não sabia se corria ou se gritava. Estava sozinha no pátio e não havia sinal de que ninguém pudesse aparecer por ali naquela hora. Tinha que pensar rápido.

- Moço, o batom, moço, por favor... – eu suplicava.

- Ou mostra ou não tem batom.

Ameacei correr e ele fez exatamente o que eu imaginava: ia soltar o cachorro. Fiquei sem saída e comecei a pensar num jeito de sair dessa situação sem despertar suspeitas. Fui saindo da valeta devagar e dando um passo para trás de cada vez; o moço ia só se aproximando. Comecei a pensar que brigar por causa de um batom talvez fosse muito pouco, era minha integridade física que estava em jogo. Rezava e pedia a Deus para que alguém aparecesse.

Um grito ao longe assustou o homem, que se distraiu e eu aproveitei para correr. Quando percebeu que eu já tinha saído em disparada, soltou o cachorro. Eu parei na beira da escadaria de acesso do prédio à rua, e o cão vindo na minha direção. Não poderia descer a escada rolando e nem havia mais o corrimão que eu costumava descer escorregando. Fiquei estática, esperando o ataque do cachorro. Era melhor encarar o cão que encarar o homem, em cujos olhos era nítido seu desejo por mim.

Quando parei, ele deu um sinal ao cão, que imediatamente parou. Ele se aproximou novamente de mim e prendeu o animal à coleira. Tentou tocar meu rosto mais uma vez, e eu esquivei. Eu, de sete anos, estava desafiando um homem de quase dois metros.

Ele fez que ia soltar o animal novamente, mas pulei entre os dois e enrosquei a corrente do cão nas pernas do homem, e o empurrei lá de cima. Ele desceu as escadas rolando com cachorro e tudo, sem ter como se proteger. Lá embaixo, seu corpo jazia com um filete de sangue escorrendo de uma de suas orelhas, e o vidro do batom líquido estilhaçado ao seu lado. O cão igualmente inerte. Fugi e subi as escadas correndo, entrei em casa e corri para o banheiro, e tomei um banho pela primeira vez sem que ninguém mandasse. A respiração estava ofegante e a imagem daquele homem tocando meu rosto não me saía da cabeça. Não queria que ninguém me visse no estado em que estava, com os braços esfolados da corrente. Fiquei um tempão pensando ainda no que havia feito, já era o segundo a quem eu fazia o mesmo esta semana.

Logo chegou a polícia, interrogou todos os moradores, ninguém sabia de nada, nem sequer conheciam aquele homem. Outra história sem sentido, outra queda de escada, e outro homem que ninguém conhecia morto. Minha vizinha, chocada, olhando o batom líquido que até há algumas horas era seu. A polícia tentando entender o que um vidro de batom fazia ali, e minha mãe, que desceu comigo para ver o que estava acontecendo, olhando para mim.

Deveria sentir-me culpada por aquela situação? Bem, não estava preparada para mais aquela investida. Não deveria ter feito nada, só corrido. Depois pensei bem: eu não tinha culpa de ser tão “sedutora” com apenas sete anos de idade.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Vermelho e branco

Ovo de gema mole, suco de abacaxi, pão, café, chá. Ele preparou tudo só para ela, com a ansiedade de uma criança na manhã do dia de Natal. A mesa posta com xícaras de louça e talheres, a toalha vermelha e branca xadrez, o guardanapo também vermelho, dobrado em pentágono, combinando.

Ele já havia chamado um táxi para levá-la ao aeroporto, em determinado horário, para que pudessem ficar um pouco mais de tempo juntos. Cada minuto era precioso e cada carinho especial. Assim que ele planejara tudo para que fosse inesquecível, cada gesto, cada passo, cada palavra. Com ele, ela estava ali, bem perto do céu, e uma bandeira vermelha e branca tremulando dizia a ela: "aqui você está segura". Tinha o sol nas mãos.

Foi uma semana intensa, de delícias de lugares, delícias gastronômicas, abraços e beijos. Por todo o tempo em que estiveram juntos, não fizeram mais do que aproveitar ao máximo a companhia um do outro. O café da manhã, tão especial, não só tinha sabor intenso de café, como também sabor de sentimentos brancos. Alegria, paz, sensação de dever cumprido, serenidade. Mas ainda viria algo mais.

Veio então o táxi, e com ele o medo e a sensação de vazio. O motorista desceu, os cumprimentou, começou a carregar os pertences dela e colocá-los no porta-malas. Entrou de volta no carro e esperou que se despedissem. As mãos dos dois, então, que se tocavam todo o tempo, foram se transformando aos poucos em um forte e doce abraço. Como uma xícara de café.

Longa e ternamente ficaram naquele abraço apertado e já cheio de saudade. Os dois tinham os óculos postos na cabeça, mas ele, sorrindo, baixou o seu primeiro. Por baixo da lente avermelhada, ela viu um discreto marejar em seus olhos. Foi aquele olhar que guardou consigo e que a fez também baixar seus óculos, a fim de ocultar o que ja era bastante visível. Sentimentos vermelhos. Paixão. Voracidade. Desejo. Ira. Vontade de chutar tudo para cima e ficar. Foi se afastando até ver a imagem de sua camiseta vermelha e branca refletida nos óculos dele. Entrou no carro e fechou a porta. Não conseguiu falar mais.

Até Callao foi um longo caminho. Um caminho que ela percorreu com um lenço na mão. Sabia que, quando ia a algum lugar, sempre deixava um pedaço de si. Desta vez, o que deixara ali fora seu coração.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Prosa moderna III

- Então tá. Um beijo.

- Ah, é? Só um beijo? Mas onde?

- Eu já te dei o beijo. É seu. Pode escolher.