terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Batom líquido

Há uma história da minha infância de que eu gosto muito, que foi quando eu comecei a gostar de maquiagem. Achava bonito as mulheres se pintando, queria imitá-las. Pegava os sapatos de salto da minha vizinha adolescente e ficava horas brincando com eles. Os batons, gastava-os todos. Adorava me olhar no espelho e desenhar com lápis a pinta no rosto de Marilyn Monroe, ou a pinta na perna de Angélica. Imaginação infantil flui fácil.

Era a primeira vez que eu via um batom líquido. Fiquei encantada com o pincelzinho de espuma, corri ao espelho para experimentar. Minha vizinha logo viu que seria difícil retirá-lo das minhas mãos e, por isso, não questionou quando pedi para ficar com ele. Desci as escadas feliz com o pequeno mimo e fui procurar o que fazer entre as árvores do jardim do prédio.

Pus o batom no bolso e fiquei circulando pelo pátio vazio. Eram quase quatro da tarde de um julho frio e estranho. Sendo um mês de férias, era esquisito olhar para aquele local deserto, sem crianças, todas recolhidas em casa. Havia um vento deliciosamente gélido, mas que, para os outros, era cortante; eu gostava. Continuei andando despreocupada e balançando sozinha nos galhos das árvores.

Não deu muito tempo, lembrei-me do batom no bolso, peguei-o e comecei a examinar a embalagem. Achava o máximo aqueles nomes complicados e compridos, os quais eu mal conseguia pronunciar sem trocar ao menos duas sílabas. Fazia isso com tudo quanto era produto, era uma divertida brincadeira de trava-língua. Fiquei, então, lendo o rótulo do batom, sem me dar conta de que estava sendo observada. De repente, me deu uma vontade enorme de fazer xixi, e eu sabia que não ia dar tempo de subir as escadas de volta para fazer qualquer coisa em casa. Procurei um lugar relativamente seguro, onde não pudesse ser vista. Agachei-me numa valeta de águas pluviais que passava nos fundos do pátio, era oculta pelas árvores e dali eu poderia observar o movimento.

Quando levantei para colocar minha calça de volta, tomei um susto tão grande, meu estômago gelou e o sangue sumiu da minha face. Eu estava sendo observada o tempo todo por um homem magro, moreno, que usava costeletas e tinha os cabelos quase raspados, vindo com um cão da raça pastor alemão. Ele se aproximou de mim, e eu, trêmula, não sabia o que fazer.

- Oi, garotinha!

Terminei de arrumar a minha calça e respondi, sem olhar para ele:

- Oi...

- Você estava fazendo xixi...

- Sim, eu estava.

- Hmmmm...

Eu estava com o batom nas mãos. Tremia feito uma vara verde. Se eu corresse, fatalmente ele soltaria o cão da coleira e este me atacaria sem o menor problema, já que ele era maior que eu.

- Dá licença, moço?

- Para onde? Deixa ver isso que você tem nas mãos.

Abri a mão e mostrei o batom.

- Posso passar no cachorro?

- Onde???

- No negócio do cachorro, ó... Sheik, mostra o negócio!

O cachorro obedeceu a ordem (!) e deixou o pênis à mostra. Fiquei apavorada.

- Deixa eu passar esse batom no cachorro...

- Moço, esse batom não é meu. Me devolve.

- Como é o seu nome?

- Talita.

- Quantos anos você tem?

- Sete.

- Você é linda, Talita. – e passou a mão pelo meu rosto.

- Moço, me devolve o batom, por favor.

- Só se você deixar eu passar no cachorro.

- Não.

- Então você vai ter que mostrar a sua florzinha para ele.

- O quê????

- Sim, a mesma florzinha que vi quando você estava se levantando e arrumando a calça. Ou mostra para ele ou eu não devolvo o batom.

- Moço, por favor... – comecei a chorar compulsivamente.

- Talita, que linda... – e passando a mão pelo meu rosto, eu tremia de desespero. Não sabia se corria ou se gritava. Estava sozinha no pátio e não havia sinal de que ninguém pudesse aparecer por ali naquela hora. Tinha que pensar rápido.

- Moço, o batom, moço, por favor... – eu suplicava.

- Ou mostra ou não tem batom.

Ameacei correr e ele fez exatamente o que eu imaginava: ia soltar o cachorro. Fiquei sem saída e comecei a pensar num jeito de sair dessa situação sem despertar suspeitas. Fui saindo da valeta devagar e dando um passo para trás de cada vez; o moço ia só se aproximando. Comecei a pensar que brigar por causa de um batom talvez fosse muito pouco, era minha integridade física que estava em jogo. Rezava e pedia a Deus para que alguém aparecesse.

Um grito ao longe assustou o homem, que se distraiu e eu aproveitei para correr. Quando percebeu que eu já tinha saído em disparada, soltou o cachorro. Eu parei na beira da escadaria de acesso do prédio à rua, e o cão vindo na minha direção. Não poderia descer a escada rolando e nem havia mais o corrimão que eu costumava descer escorregando. Fiquei estática, esperando o ataque do cachorro. Era melhor encarar o cão que encarar o homem, em cujos olhos era nítido seu desejo por mim.

Quando parei, ele deu um sinal ao cão, que imediatamente parou. Ele se aproximou novamente de mim e prendeu o animal à coleira. Tentou tocar meu rosto mais uma vez, e eu esquivei. Eu, de sete anos, estava desafiando um homem de quase dois metros.

Ele fez que ia soltar o animal novamente, mas pulei entre os dois e enrosquei a corrente do cão nas pernas do homem, e o empurrei lá de cima. Ele desceu as escadas rolando com cachorro e tudo, sem ter como se proteger. Lá embaixo, seu corpo jazia com um filete de sangue escorrendo de uma de suas orelhas, e o vidro do batom líquido estilhaçado ao seu lado. O cão igualmente inerte. Fugi e subi as escadas correndo, entrei em casa e corri para o banheiro, e tomei um banho pela primeira vez sem que ninguém mandasse. A respiração estava ofegante e a imagem daquele homem tocando meu rosto não me saía da cabeça. Não queria que ninguém me visse no estado em que estava, com os braços esfolados da corrente. Fiquei um tempão pensando ainda no que havia feito, já era o segundo a quem eu fazia o mesmo esta semana.

Logo chegou a polícia, interrogou todos os moradores, ninguém sabia de nada, nem sequer conheciam aquele homem. Outra história sem sentido, outra queda de escada, e outro homem que ninguém conhecia morto. Minha vizinha, chocada, olhando o batom líquido que até há algumas horas era seu. A polícia tentando entender o que um vidro de batom fazia ali, e minha mãe, que desceu comigo para ver o que estava acontecendo, olhando para mim.

Deveria sentir-me culpada por aquela situação? Bem, não estava preparada para mais aquela investida. Não deveria ter feito nada, só corrido. Depois pensei bem: eu não tinha culpa de ser tão “sedutora” com apenas sete anos de idade.

Um comentário:

  1. que dificil para una niña pero que buena lección, para todas, realmente me llegan mucho estas cosas, sera porque tengo a la mas linda del mundo que salio de mi y me da miedo que le pueda pasar algo como eso.
    insisto tienes mucha facilidad para escribir.

    Laura.

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