Na guerra selvagem da cidade de todo dia, ele levanta-se mais uma vez para cumprir com a sua obrigação laboral. Entra no ônibus, pisando pé de um, empurrando a bolsa de outra, disputando espaços. Conhece e não conhece o seu lugar.
Adentra o laboratório, abre seus vidros de éter, clorofórmio, ácido clorídrico. Mecanicamente continua sua tarefa de todos os dias. Não vê luz, apenas sombras. As sombras das árvores lá fora, a sombra do seu sombrio trabalho. E continua trocando órgãos de lugar, trocando éter de lugar. E passa o dia nessa sombra.
Olha pela janela. O veículo funesto para à porta. Abre-se o rabecão. Apenas um corpo. Coberto de jornal, somente o abdome era visível. Algo pareceu-lhe familiar... seu pai! Ah, Deus, que aconteceu! Da janela mesmo ele gritara ao encarregado, com os olhos já marejados pelas lágrimas, perguntando o que havia acontecido. "Tiro no ouvido". Aquela resposta torturou-o como o próprio tiro.
Desceu a rampa correndo, foi à sala de necrópsia. Era a primeira vez que ali ele entrava. Via corpos espalhados, todos os tipos de traumas; alguns já com a marca e sutura finais da necrópsia. Cego pela dor, procurava pelo corpo que vira pela janela, e finalmente viu-o entrando numa maca, nu, ainda com jornais. Pediu licença ao encarregado e retirou os jornais de seu rosto. Um osso temporal partido; uma caixa timpânica esfacelada. Não era seu pai, mas foi só vendo o rosto que tivera essa certeza. E também, por que haveria de ser? Teria motivo para tal? E esse homem? Quem era, por que estava ali, e ele, chorando por um desconhecido?
Olhou à sua volta, e percebeu que a geladeira estava em processo de limpeza. Já não eram somente corpos, eram braços, pernas, cérebros, corações. A dimensão da dor não é gástrica, é indescritível, e a sensação é de todos estarem respirando, dormindo, em paz. Em paz ele sabia que estavam, e não o assustavam. Sabia que estavam vivos, ao menos no pensamento de alguém querido. Pensava na família, até naqueles que pisara dentro do ônibus. Amanhã será ele ou serão esses outros a estarem nessas macas.
Ouve o ronco do motor. O rabecão sai em busca de mais alguém. E ele, trabalhador, retorna à sua realidade da guerra insana de todo dia, e pensa: vida... isso é ouro!
(1997)
Excelente texto Glaucia. Ganhou um fã.
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