quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Voz de sol

- Bom dia, dona Rosa!

- Bom dia, menina doutora! A senhora 'tá boa?

- Eu estou ótima! A senhora está com tempo hoje? - brincou. - Queria anotar aquelas quadrinhas que a senhora recitou semana passada. Achei tão lindas!

- Ah, sim, eu posso.

- Então está bem, vou lá dentro fazer as minhas anotações e volto logo.

Márcia, a fisioterapeuta, acabara de chegar naquela manhã ao asilo em que trabalhava havia pouco tempo. Cumprimentou dona Rosa, uma das internas, e como de costume, a velha e cega senhora sempre recitava uma quadrinha. Na semana anterior, dona Rosa havia recitado uma série delas sobre a natureza e o que o homem vinha fazendo com ela, o que encantou Márcia, pela expressividade, emoção e principalmente a criatividade, já que muitas vinham naturalmente como para os repentistas. A fisioterapeuta entrou então na sala de enfermagem e começou a fazer anotações. Fazia o planejamento terapêutico de cada um dos internos e os acompanhava em suas dificuldades de movimento e equilíbrio.

De repente, uma auxiliar de cozinha invade a sala de enfermagem e grita:

- Doutora, pelo amor de Deus! A dona Rosa 'tá passando mal!

Márcia não teve tempo de pensar muito. Além de uma enfermeira, era a única profissional de saúde que estava na casa naquele momento. Largou as anotações sobre a mesa e foi em disparada ao pátio onde, cinco minutos atrás, dona Rosa estava tomando sol. Ao chegar, viu dona Rosa caída no chão, com a respiração pouco ritmada, quase ausente, lutando pela vida. Ligaram para a emergência.

Estetoscópio. Esfigmomanômetro. Coração.

Cada segundo era precioso. Enquanto o serviço de emergência não chegava, a fisioterapeuta e a enfermeira começaram uma corrida contra o tempo, um ritmo frenético, rasgando com uma faca a blusa e o sutiã da senhora, e alternando-se entre massagem cardíaca e respiração boca a boca. A auxiliar de cozinha trouxe um espelho de Glatzel, para conferir se a senhora ainda respirava. O halo que se formava com o ar era cada vez menor. A respiração cada vez mais fraca. Dona Rosa a cada momento mais distante.

Estetoscópio. Espelho. Coração.

Foram exatos dezoito minutos que se passaram em dois. Ao mesmo tempo, os mais longos da vida de Márcia, que nunca tinha visto alguém morrendo. A sensação ímpar de impotência. A vida escorrendo por entre seus dedos.

Coração.

Finalmente, a velha senhora sucumbiu. As duas profissionais se levantaram e contemplaram, em silêncio, o cadáver por alguns minutos. A emergência então, chegou, e, nada mais havendo a fazer, registrou-se o óbito. Márcia buscou um cobertor e, junto com a enfermeira, improvisou uma rede. Carregaram o corpo para o quarto de dona Rosa, deitaram-na em sua cama e lhe cobriram com um lençol.

Por duas vezes Márcia voltou ao quarto e observava o corpo inerte. Da primeira, levantou o tecido e fechou os olhos da senhora. Da segunda, sentou-se ao seu lado e pensava. Pensava. As quadrinhas. A vida. Cinco minutos. Que manhã, meu Deus! Depois de tanto esforço, finalmente estava mais calma, mas ainda em choque. Foi para casa. Não conseguiu almoçar, não conseguia falar. Passou o resto do dia sentindo dores de cabeça e de estômago. Enquanto isso, a administração do asilo foi comunicada, tomando todas as providências para o enterro no dia seguinte.

Márcia fez vômito por toda a noite. Conseguiu dormir lá pelas cinco da manhã. Acordou passando muito mal ainda, e mesmo assim foi ao cemitério, embora todos lhe dissessem que não fosse. Mas tinha que ver o corpo de dona Rosa baixando à sepultura. Precisava acreditar que tudo estava terminado, e só vendo as coroas de flores sobre o túmulo e aquela caminhada silenciosa da saída de um funeral é que teria a certeza de que fizera sua parte.

No cemitério, o enterro foi sem aqueles antipáticos e falsos discursos, com pouca gente, só os administradores e os profissionais de saúde do asilo. Apenas o padre falava, encomendava o corpo e fazia as orações necessárias. Márcia estava próxima dos pés de dona Rosa. Olhava sua face serena e pensava em tudo que dona Rosa lhe contara sobre sua vida. Interessante pensar que nem todo mundo em asilo é abandonado, porque esta é a primeira ideia que vem à cabeça das pessoas. Ali a velha senhora estava porque lhe faltava companhia e alguém que cuidasse dela. Um glaucoma não tratado a deixou cega e, sozinha no mundo, para onde iria?

Cerrado o caixão, a fisioterapeuta acompanhava em silêncio a descida do ataúde. Um gaiato comentava ao seu lado, sem saber de quem se tratava:

- Dizem que ela morreu nos braços da fisioterapeuta.

Márcia, irritada, respondeu, sílaba por sílaba:

- Moço, pelo amor de Deus, fica quieto!

O homem ficou sem jeito e se afastou, assim como as outras pessoas. Márcia ficou sozinha e sentou-se no chão. Saiu dali só depois de cada pá de cal e cada punhado de terra posto em seu lugar, assim como todas as coroas de flores organizadas sobre o túmulo recém coberto. Não chorava. Não reagia. Apenas seu estômago acompanhava o movimento com revoluções que a deixavam pior. Levantou-se e caminhou devagar até a saída do cemitério, onde vomitou mais uma vez. Tomou um táxi e foi para casa, pediu à mãe um remédio para o estômago e outro para dormir e desvaneceu no sofá.

Como era de se esperar, sonhou com o dia pesado que teve. Ouvia dona Rosa recitar as quadrinhas, mas não conseguia guardá-las, não podia anotá-las. A senhora estava feliz. Feliz como era em vida. A velhice não é tão ruim como muitos pregam. E dona Rosa era, sim, muito feliz, porque tinha um sol, um sol que lhe aquecia e que tinha voz. E com essa voz de sol é que se aproximou de Márcia, num campo muito verde, para dizer-lhe muitas coisas. A jovem não conseguia definir muito bem o que dizia, só ao final conseguiu escutar, ao ser tocada no ombro pela senhora. Passando as mãos através do cabelo de Márcia, dona Rosa disse:

- Menina doutora! A senhora é tão nova... ainda falta muito para entender tudo. Falta muito para entender o que é o amor, o que é ter alguém ao seu lado. Eu fui para o asilo porque já não tinha família de sangue. Meu útero seco só pôde gerar uma filha, minha única filha, e que morreu junto com meu neto num acidente. Meu marido, depois de tantos anos, também morreu, era a hora dele. Chega a hora de todo mundo um dia. Mas eu vivi sim, menina. Sei que você tentou. Não se preocupe, eu estou bem, era minha hora mesmo, não se sinta culpada. E eu sinto o sol, como sentia quando você se aproximava. Sei do seu carinho, menina. E sei também que lhe falta alguém que a ame que não só os seus pais. Do jeito que você é, só alguém que tenha asas na alma. Que seja seu sol, de quem você sinta o calor. Ah, menina Márcia! Eu queria apenas ter visto mais vestígios de sol! Mas fiquei cega, e só pude sentir seu calor. Calor igual de abraço. Apesar de sentir, sol a gente não ouve, né? Do meu marido eu ouvia sim. Todos os dias ele me dizia que eu era linda.

Um comentário:

  1. Vim te ler no dia errado...hoje faz 25 anos que minha mãe partiu...e chorei como uma criança ao ler esse texto tão lindo!
    Beijo!

    ResponderExcluir