Toda família tem um neto ou uma
neta favorita. Aquele primo perfeitinho, de quem você fica até com raiva de tão
certinho que ele faz tudo na vida. Ou ele ganha bem, ou é cheiroso, ou tira
sempre notas boas, sempre está em vantagem sobre o resto da família.
Recentemente, tive a oportunidade
de observar uma família a pedido, e cheguei mais uma vez a esse monstruoso
diagnóstico das relações humanas: família é quem a gente escolhe, o resto é
parente. Vejam bem, não sou psicóloga, sou fonoaudióloga, também cuido de gente
e as relações humanas, principalmente as familiares, são necessárias na minha
profissão. Por isso talvez elas sejam a parte mais dolorida e demorada em uma
terapia.
A quantidade de memes de facebook
sobre odiar parentes é incrível. E eu e a maioria das pessoas nos identificamos
com todos eles imediatamente. E foi observando essa família que citei acima que
pude ver o quanto quem nos detona são os nossos próprios pais. Geração nascida
na década de 50, 60, que é o caso dos meus. Antes que vocês venham com o papo
sobre eu ser ingrata com eles, explico: não tenho obrigação nenhuma de ser
grata por aquilo que me detonou e não me ajudou a crescer.
Nossos pais falavam mal da gente.
Não sei se por falta de assunto, eles precisavam de algo em comum com os demais
parentes para iniciarem uma conversa, então falavam sobre filhos. E o que tinha
de bom para falar de uma criança que, como qualquer outra, não queria tomar um
banho, andava com amigos que eles julgavam não muito bons, não obedecia, não
isso, não aquilo? Parente adora uma fofoca, uma desgraça alheia! Como ter o
mesmo sobrenome não é garantia de confiança, ali estava o prato cheio para quem
sempre esperou a gente ir para o buraco: concordavam com nossos pais e ainda
espalhavam para o resto da família o quanto nós éramos filhos que davam
trabalho.
Aí, é claro, sempre tem aquela
avó para ficar enchendo a bola do fulaninho e detonando quem? Você! E a sua mãe
nunca sabia por que diabos você não queria ir à casa da avó ou daquele parente
chato que só sabia detonar você. Explicava para ela e, como você só tinha 5, 6
anos, não tinha querer não, era dia de visitar o parente chato e acabou. E lá
na casa do sujeito era sempre a mesma ladainha: “ain, você não obedece, ain, você
é feia, você isso, ain você aquilo”. Enche o saco você ir a um lugar onde só falam mal de você. Cansa.
Até o dia em que você descobre
que quem dava a munição para o parente eram os seus próprios pais. Chocante,
né? Então, na família ali de cima pude ver claramente quem era a mãe que falava
mal do filho e quem era a mãe que falava bem. E, pasme, vá você falar para a
mãe linguaruda que o que ela está fazendo é errado: ela diz que a mãe do outro
o está protegendo. É óbvio, cara pálida, ela que é a mãe dele tem mais é que
proteger; se ela não o fizer, quem o fará?
Então você percebe que é por isso
que hoje não consegue ser a perua que sonhou ser quando criança (acho lindo,
viu, de verdade!). Sua mãe dizia que você era feia, que se vestia mal, que não
podia usar maquiagem. Cresceu, tem problemas com o espelho até hoje, e ela
insiste, achando que está te fazendo um bem: você não se arruma, você tá gorda,
você não sabe passar maquiagem.
Você tinha uma melhor amiga, mas
não podia andar com ela. Era má pessoa? Não. O problema era o bairro comentar que
ela seria homossexual. Preocupar-se em orientar os filhos sobre o assunto,
não podia. Mas detonar a amiguinha em questão, ah, isso podia. E para a sua
família, claro.
Você tirava sempre nota boa, mas bastava um erro seu – ninguém nasce sabendo – para você virar chacota. Eu tenho asco de me lembrar de um dia em que fui humilhada dentro de casa por uma pessoa estranha a nós, porque eu era criança e não sabia que Papanicolaou e teste de beta-HCG são coisas diferentes. A minha mãe, ao invés de repreender a pessoa, vira para mim e diz “tá vendo? Quem manda abrir a boca? Quem manda ser sabe-tudo?” Até hoje eu tenho dificuldade em levantar a mão em sala de aula e tirar uma dúvida. Tenho medo de parecer burra e também de ser aquela tia chata que faz pergunta no último minuto do último horário na sexta, que vai estudar depois dos 40 porque não tem o que fazer em casa. Até que eu sou gente boa, essa pergunta no último minuto da sexta eu não faço não, meus colegas podem ficar tranquilos. Assim como eles, também estou doida para ir embora!
Você tirava sempre nota boa, mas bastava um erro seu – ninguém nasce sabendo – para você virar chacota. Eu tenho asco de me lembrar de um dia em que fui humilhada dentro de casa por uma pessoa estranha a nós, porque eu era criança e não sabia que Papanicolaou e teste de beta-HCG são coisas diferentes. A minha mãe, ao invés de repreender a pessoa, vira para mim e diz “tá vendo? Quem manda abrir a boca? Quem manda ser sabe-tudo?” Até hoje eu tenho dificuldade em levantar a mão em sala de aula e tirar uma dúvida. Tenho medo de parecer burra e também de ser aquela tia chata que faz pergunta no último minuto do último horário na sexta, que vai estudar depois dos 40 porque não tem o que fazer em casa. Até que eu sou gente boa, essa pergunta no último minuto da sexta eu não faço não, meus colegas podem ficar tranquilos. Assim como eles, também estou doida para ir embora!
E a vontade de falar mal dos
próprios filhos é tão mais forte que os seus pais que eles ficam sem ação
quando questionados em meio ao turbilhão. Um exemplo foi esse cara do Papanicolaou.
Custava a minha mãe ter dito a ele que eu tinha só 12 anos e que isso ainda não
me tinha sido ensinado? Em outra família observada, custava a mãe do fulaninho
cortar a tia que tirava onda das espinhas dele? Custava a mãe de outro ter dito aos demais familiares que não vê problema algum em ter um filho homossexual e que isso não vai fazê-la amar menos o filho? Custava! Elas ficavam e ficam caladas! Vá
questioná-las depois do ocorrido: elas se estressam ao extremo e tentam jogar a
culpa do comportamento delas em você. Na hora em que você está diante de um
médico ou outro profissional de saúde, ou ainda, de um raro parente que você ama e
que tem empatia por você, e tem a oportunidade de falar o que sente em relação
àquilo, elas tentam de toda forma se justificar e nos silenciar, para não
causar confusão em família. E nem venham me falar que é por falta de escolaridade
desses pais: estou falando tanto de gente que tem somente o fundamental como
gente com nível superior e pós-graduação.
Você também começa a observar que
os seus pais têm bastante amizade com aquelas pessoas que todo mundo mais detesta,
e eles não entendem por que essa gente é odiada. São os parentes e amigos que
também falam mal dos filhos ou de alguma forma fizeram mal para a família algum
dia. Os mesmos que acham um absurdo hoje em dia não bater nos filhos, os mesmos
que acham absurdo mulher responder à altura de “ordem” do marido, acham que depressão é frescura, que homossexualidade é falta de porrada, que preto e/ou pobre não são gente, que alergia é invenção de menino, que acham
absurdo as relações estarem descartáveis atualmente. Na via contrária, você
também observa que aqueles amigos dos seus pais que você ama e que eles visitam
menos são exatamente os que sempre falaram bem dos filhos. Você não se lembra de
nenhuma nota ruim daquela fulaninha, filha da beltrana, lembra? Pois é, das
minhas todos se lembram até hoje. Depois ninguém sabe por que eu sou grossa. Por
fim, você descobre também que não tem raiva daquele primo perfeitinho lá de cima,
você tem raiva mesmo é de a sua avó ficar repetindo isso o tempo todo.
Por aí você entende o quanto sua
autoestima detonada favorece a aparição de pessoas abusivas e manipuladoras na
sua vida, que usam a necessidade que você tem de ser amada contra você. Agridem
psicologicamente, às vezes fisicamente, como sei de alguns casos, jogam a família
contra você, vendem a imagem de boas pessoas para que todos acreditem que você
é a errada por desprezar um sujeito tão bacana. E é claro que nesse tipo de
família o vagabundo se cria, porque ele sabe que quem deveria te defender vai
ajudar a detonar você. Você sempre estará errada. Então você termina com uma coisa
dessas e percebe que merece muito mais da vida. E chega à maravilhosa conclusão
de que não são as relações que estão descartáveis: somos nós percebendo que não
temos que aceitar migalhas de atenção e chamar de isso de amor.
Sou grata por muitas coisas sim.
Sou uma filha que dá trabalho? Acho que não: até hoje não fugi de casa, não
usei droga (não sei nem o gosto que o cigarro tem), não tenho problema com a
polícia nem com a justiça. O trabalho que eu dava era só o de ser criança e,
depois, adolescente. Hoje em dia sou gente sim, fiz meu curso na universidade,
trabalho com isso, com a autoestima destruída, mas em franca recuperação, tanto
que nem convido esse pessoalzinho para minha casa. Não dou a parente direito nenhum de festejar
quando estou na merda, muito menos de estar comigo quando estou bem.