quando em fevereiro você despontar
a sua mão eu vou tomar
para cada passo desta vida
vou te levando a sambar
na esquina da minha avenida
tou te esperando que é para te falar
que vou para o meio da rua
tou debaixo da chuva
que é para me molhar
se chover no carnaval
a gente vai para a rua se beijar
se beijar até cansar
até no corpo a roupa colar
e quando cansar
a gente vai para casa
vai se ardendo em brasa
até o dia clarear
sábado, 26 de fevereiro de 2011
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
Voz de sol
- Bom dia, dona Rosa!
- Bom dia, menina doutora! A senhora 'tá boa?
- Eu estou ótima! A senhora está com tempo hoje? - brincou. - Queria anotar aquelas quadrinhas que a senhora recitou semana passada. Achei tão lindas!
- Ah, sim, eu posso.
- Então está bem, vou lá dentro fazer as minhas anotações e volto logo.
Márcia, a fisioterapeuta, acabara de chegar naquela manhã ao asilo em que trabalhava havia pouco tempo. Cumprimentou dona Rosa, uma das internas, e como de costume, a velha e cega senhora sempre recitava uma quadrinha. Na semana anterior, dona Rosa havia recitado uma série delas sobre a natureza e o que o homem vinha fazendo com ela, o que encantou Márcia, pela expressividade, emoção e principalmente a criatividade, já que muitas vinham naturalmente como para os repentistas. A fisioterapeuta entrou então na sala de enfermagem e começou a fazer anotações. Fazia o planejamento terapêutico de cada um dos internos e os acompanhava em suas dificuldades de movimento e equilíbrio.
De repente, uma auxiliar de cozinha invade a sala de enfermagem e grita:
- Doutora, pelo amor de Deus! A dona Rosa 'tá passando mal!
Márcia não teve tempo de pensar muito. Além de uma enfermeira, era a única profissional de saúde que estava na casa naquele momento. Largou as anotações sobre a mesa e foi em disparada ao pátio onde, cinco minutos atrás, dona Rosa estava tomando sol. Ao chegar, viu dona Rosa caída no chão, com a respiração pouco ritmada, quase ausente, lutando pela vida. Ligaram para a emergência.
Estetoscópio. Esfigmomanômetro. Coração.
Cada segundo era precioso. Enquanto o serviço de emergência não chegava, a fisioterapeuta e a enfermeira começaram uma corrida contra o tempo, um ritmo frenético, rasgando com uma faca a blusa e o sutiã da senhora, e alternando-se entre massagem cardíaca e respiração boca a boca. A auxiliar de cozinha trouxe um espelho de Glatzel, para conferir se a senhora ainda respirava. O halo que se formava com o ar era cada vez menor. A respiração cada vez mais fraca. Dona Rosa a cada momento mais distante.
Estetoscópio. Espelho. Coração.
Foram exatos dezoito minutos que se passaram em dois. Ao mesmo tempo, os mais longos da vida de Márcia, que nunca tinha visto alguém morrendo. A sensação ímpar de impotência. A vida escorrendo por entre seus dedos.
Coração.
Finalmente, a velha senhora sucumbiu. As duas profissionais se levantaram e contemplaram, em silêncio, o cadáver por alguns minutos. A emergência então, chegou, e, nada mais havendo a fazer, registrou-se o óbito. Márcia buscou um cobertor e, junto com a enfermeira, improvisou uma rede. Carregaram o corpo para o quarto de dona Rosa, deitaram-na em sua cama e lhe cobriram com um lençol.
Por duas vezes Márcia voltou ao quarto e observava o corpo inerte. Da primeira, levantou o tecido e fechou os olhos da senhora. Da segunda, sentou-se ao seu lado e pensava. Pensava. As quadrinhas. A vida. Cinco minutos. Que manhã, meu Deus! Depois de tanto esforço, finalmente estava mais calma, mas ainda em choque. Foi para casa. Não conseguiu almoçar, não conseguia falar. Passou o resto do dia sentindo dores de cabeça e de estômago. Enquanto isso, a administração do asilo foi comunicada, tomando todas as providências para o enterro no dia seguinte.
Márcia fez vômito por toda a noite. Conseguiu dormir lá pelas cinco da manhã. Acordou passando muito mal ainda, e mesmo assim foi ao cemitério, embora todos lhe dissessem que não fosse. Mas tinha que ver o corpo de dona Rosa baixando à sepultura. Precisava acreditar que tudo estava terminado, e só vendo as coroas de flores sobre o túmulo e aquela caminhada silenciosa da saída de um funeral é que teria a certeza de que fizera sua parte.
No cemitério, o enterro foi sem aqueles antipáticos e falsos discursos, com pouca gente, só os administradores e os profissionais de saúde do asilo. Apenas o padre falava, encomendava o corpo e fazia as orações necessárias. Márcia estava próxima dos pés de dona Rosa. Olhava sua face serena e pensava em tudo que dona Rosa lhe contara sobre sua vida. Interessante pensar que nem todo mundo em asilo é abandonado, porque esta é a primeira ideia que vem à cabeça das pessoas. Ali a velha senhora estava porque lhe faltava companhia e alguém que cuidasse dela. Um glaucoma não tratado a deixou cega e, sozinha no mundo, para onde iria?
Cerrado o caixão, a fisioterapeuta acompanhava em silêncio a descida do ataúde. Um gaiato comentava ao seu lado, sem saber de quem se tratava:
- Dizem que ela morreu nos braços da fisioterapeuta.
Márcia, irritada, respondeu, sílaba por sílaba:
- Moço, pelo amor de Deus, fica quieto!
O homem ficou sem jeito e se afastou, assim como as outras pessoas. Márcia ficou sozinha e sentou-se no chão. Saiu dali só depois de cada pá de cal e cada punhado de terra posto em seu lugar, assim como todas as coroas de flores organizadas sobre o túmulo recém coberto. Não chorava. Não reagia. Apenas seu estômago acompanhava o movimento com revoluções que a deixavam pior. Levantou-se e caminhou devagar até a saída do cemitério, onde vomitou mais uma vez. Tomou um táxi e foi para casa, pediu à mãe um remédio para o estômago e outro para dormir e desvaneceu no sofá.
Como era de se esperar, sonhou com o dia pesado que teve. Ouvia dona Rosa recitar as quadrinhas, mas não conseguia guardá-las, não podia anotá-las. A senhora estava feliz. Feliz como era em vida. A velhice não é tão ruim como muitos pregam. E dona Rosa era, sim, muito feliz, porque tinha um sol, um sol que lhe aquecia e que tinha voz. E com essa voz de sol é que se aproximou de Márcia, num campo muito verde, para dizer-lhe muitas coisas. A jovem não conseguia definir muito bem o que dizia, só ao final conseguiu escutar, ao ser tocada no ombro pela senhora. Passando as mãos através do cabelo de Márcia, dona Rosa disse:
- Menina doutora! A senhora é tão nova... ainda falta muito para entender tudo. Falta muito para entender o que é o amor, o que é ter alguém ao seu lado. Eu fui para o asilo porque já não tinha família de sangue. Meu útero seco só pôde gerar uma filha, minha única filha, e que morreu junto com meu neto num acidente. Meu marido, depois de tantos anos, também morreu, era a hora dele. Chega a hora de todo mundo um dia. Mas eu vivi sim, menina. Sei que você tentou. Não se preocupe, eu estou bem, era minha hora mesmo, não se sinta culpada. E eu sinto o sol, como sentia quando você se aproximava. Sei do seu carinho, menina. E sei também que lhe falta alguém que a ame que não só os seus pais. Do jeito que você é, só alguém que tenha asas na alma. Que seja seu sol, de quem você sinta o calor. Ah, menina Márcia! Eu queria apenas ter visto mais vestígios de sol! Mas fiquei cega, e só pude sentir seu calor. Calor igual de abraço. Apesar de sentir, sol a gente não ouve, né? Do meu marido eu ouvia sim. Todos os dias ele me dizia que eu era linda.
- Bom dia, menina doutora! A senhora 'tá boa?
- Eu estou ótima! A senhora está com tempo hoje? - brincou. - Queria anotar aquelas quadrinhas que a senhora recitou semana passada. Achei tão lindas!
- Ah, sim, eu posso.
- Então está bem, vou lá dentro fazer as minhas anotações e volto logo.
Márcia, a fisioterapeuta, acabara de chegar naquela manhã ao asilo em que trabalhava havia pouco tempo. Cumprimentou dona Rosa, uma das internas, e como de costume, a velha e cega senhora sempre recitava uma quadrinha. Na semana anterior, dona Rosa havia recitado uma série delas sobre a natureza e o que o homem vinha fazendo com ela, o que encantou Márcia, pela expressividade, emoção e principalmente a criatividade, já que muitas vinham naturalmente como para os repentistas. A fisioterapeuta entrou então na sala de enfermagem e começou a fazer anotações. Fazia o planejamento terapêutico de cada um dos internos e os acompanhava em suas dificuldades de movimento e equilíbrio.
De repente, uma auxiliar de cozinha invade a sala de enfermagem e grita:
- Doutora, pelo amor de Deus! A dona Rosa 'tá passando mal!
Márcia não teve tempo de pensar muito. Além de uma enfermeira, era a única profissional de saúde que estava na casa naquele momento. Largou as anotações sobre a mesa e foi em disparada ao pátio onde, cinco minutos atrás, dona Rosa estava tomando sol. Ao chegar, viu dona Rosa caída no chão, com a respiração pouco ritmada, quase ausente, lutando pela vida. Ligaram para a emergência.
Estetoscópio. Esfigmomanômetro. Coração.
Cada segundo era precioso. Enquanto o serviço de emergência não chegava, a fisioterapeuta e a enfermeira começaram uma corrida contra o tempo, um ritmo frenético, rasgando com uma faca a blusa e o sutiã da senhora, e alternando-se entre massagem cardíaca e respiração boca a boca. A auxiliar de cozinha trouxe um espelho de Glatzel, para conferir se a senhora ainda respirava. O halo que se formava com o ar era cada vez menor. A respiração cada vez mais fraca. Dona Rosa a cada momento mais distante.
Estetoscópio. Espelho. Coração.
Foram exatos dezoito minutos que se passaram em dois. Ao mesmo tempo, os mais longos da vida de Márcia, que nunca tinha visto alguém morrendo. A sensação ímpar de impotência. A vida escorrendo por entre seus dedos.
Coração.
Finalmente, a velha senhora sucumbiu. As duas profissionais se levantaram e contemplaram, em silêncio, o cadáver por alguns minutos. A emergência então, chegou, e, nada mais havendo a fazer, registrou-se o óbito. Márcia buscou um cobertor e, junto com a enfermeira, improvisou uma rede. Carregaram o corpo para o quarto de dona Rosa, deitaram-na em sua cama e lhe cobriram com um lençol.
Por duas vezes Márcia voltou ao quarto e observava o corpo inerte. Da primeira, levantou o tecido e fechou os olhos da senhora. Da segunda, sentou-se ao seu lado e pensava. Pensava. As quadrinhas. A vida. Cinco minutos. Que manhã, meu Deus! Depois de tanto esforço, finalmente estava mais calma, mas ainda em choque. Foi para casa. Não conseguiu almoçar, não conseguia falar. Passou o resto do dia sentindo dores de cabeça e de estômago. Enquanto isso, a administração do asilo foi comunicada, tomando todas as providências para o enterro no dia seguinte.
Márcia fez vômito por toda a noite. Conseguiu dormir lá pelas cinco da manhã. Acordou passando muito mal ainda, e mesmo assim foi ao cemitério, embora todos lhe dissessem que não fosse. Mas tinha que ver o corpo de dona Rosa baixando à sepultura. Precisava acreditar que tudo estava terminado, e só vendo as coroas de flores sobre o túmulo e aquela caminhada silenciosa da saída de um funeral é que teria a certeza de que fizera sua parte.
No cemitério, o enterro foi sem aqueles antipáticos e falsos discursos, com pouca gente, só os administradores e os profissionais de saúde do asilo. Apenas o padre falava, encomendava o corpo e fazia as orações necessárias. Márcia estava próxima dos pés de dona Rosa. Olhava sua face serena e pensava em tudo que dona Rosa lhe contara sobre sua vida. Interessante pensar que nem todo mundo em asilo é abandonado, porque esta é a primeira ideia que vem à cabeça das pessoas. Ali a velha senhora estava porque lhe faltava companhia e alguém que cuidasse dela. Um glaucoma não tratado a deixou cega e, sozinha no mundo, para onde iria?
Cerrado o caixão, a fisioterapeuta acompanhava em silêncio a descida do ataúde. Um gaiato comentava ao seu lado, sem saber de quem se tratava:
- Dizem que ela morreu nos braços da fisioterapeuta.
Márcia, irritada, respondeu, sílaba por sílaba:
- Moço, pelo amor de Deus, fica quieto!
O homem ficou sem jeito e se afastou, assim como as outras pessoas. Márcia ficou sozinha e sentou-se no chão. Saiu dali só depois de cada pá de cal e cada punhado de terra posto em seu lugar, assim como todas as coroas de flores organizadas sobre o túmulo recém coberto. Não chorava. Não reagia. Apenas seu estômago acompanhava o movimento com revoluções que a deixavam pior. Levantou-se e caminhou devagar até a saída do cemitério, onde vomitou mais uma vez. Tomou um táxi e foi para casa, pediu à mãe um remédio para o estômago e outro para dormir e desvaneceu no sofá.
Como era de se esperar, sonhou com o dia pesado que teve. Ouvia dona Rosa recitar as quadrinhas, mas não conseguia guardá-las, não podia anotá-las. A senhora estava feliz. Feliz como era em vida. A velhice não é tão ruim como muitos pregam. E dona Rosa era, sim, muito feliz, porque tinha um sol, um sol que lhe aquecia e que tinha voz. E com essa voz de sol é que se aproximou de Márcia, num campo muito verde, para dizer-lhe muitas coisas. A jovem não conseguia definir muito bem o que dizia, só ao final conseguiu escutar, ao ser tocada no ombro pela senhora. Passando as mãos através do cabelo de Márcia, dona Rosa disse:
- Menina doutora! A senhora é tão nova... ainda falta muito para entender tudo. Falta muito para entender o que é o amor, o que é ter alguém ao seu lado. Eu fui para o asilo porque já não tinha família de sangue. Meu útero seco só pôde gerar uma filha, minha única filha, e que morreu junto com meu neto num acidente. Meu marido, depois de tantos anos, também morreu, era a hora dele. Chega a hora de todo mundo um dia. Mas eu vivi sim, menina. Sei que você tentou. Não se preocupe, eu estou bem, era minha hora mesmo, não se sinta culpada. E eu sinto o sol, como sentia quando você se aproximava. Sei do seu carinho, menina. E sei também que lhe falta alguém que a ame que não só os seus pais. Do jeito que você é, só alguém que tenha asas na alma. Que seja seu sol, de quem você sinta o calor. Ah, menina Márcia! Eu queria apenas ter visto mais vestígios de sol! Mas fiquei cega, e só pude sentir seu calor. Calor igual de abraço. Apesar de sentir, sol a gente não ouve, né? Do meu marido eu ouvia sim. Todos os dias ele me dizia que eu era linda.
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
Batom líquido
Há uma história da minha infância de que eu gosto muito, que foi quando eu comecei a gostar de maquiagem. Achava bonito as mulheres se pintando, queria imitá-las. Pegava os sapatos de salto da minha vizinha adolescente e ficava horas brincando com eles. Os batons, gastava-os todos. Adorava me olhar no espelho e desenhar com lápis a pinta no rosto de Marilyn Monroe, ou a pinta na perna de Angélica. Imaginação infantil flui fácil.
Era a primeira vez que eu via um batom líquido. Fiquei encantada com o pincelzinho de espuma, corri ao espelho para experimentar. Minha vizinha logo viu que seria difícil retirá-lo das minhas mãos e, por isso, não questionou quando pedi para ficar com ele. Desci as escadas feliz com o pequeno mimo e fui procurar o que fazer entre as árvores do jardim do prédio.
Pus o batom no bolso e fiquei circulando pelo pátio vazio. Eram quase quatro da tarde de um julho frio e estranho. Sendo um mês de férias, era esquisito olhar para aquele local deserto, sem crianças, todas recolhidas em casa. Havia um vento deliciosamente gélido, mas que, para os outros, era cortante; eu gostava. Continuei andando despreocupada e balançando sozinha nos galhos das árvores.
Não deu muito tempo, lembrei-me do batom no bolso, peguei-o e comecei a examinar a embalagem. Achava o máximo aqueles nomes complicados e compridos, os quais eu mal conseguia pronunciar sem trocar ao menos duas sílabas. Fazia isso com tudo quanto era produto, era uma divertida brincadeira de trava-língua. Fiquei, então, lendo o rótulo do batom, sem me dar conta de que estava sendo observada. De repente, me deu uma vontade enorme de fazer xixi, e eu sabia que não ia dar tempo de subir as escadas de volta para fazer qualquer coisa em casa. Procurei um lugar relativamente seguro, onde não pudesse ser vista. Agachei-me numa valeta de águas pluviais que passava nos fundos do pátio, era oculta pelas árvores e dali eu poderia observar o movimento.
Quando levantei para colocar minha calça de volta, tomei um susto tão grande, meu estômago gelou e o sangue sumiu da minha face. Eu estava sendo observada o tempo todo por um homem magro, moreno, que usava costeletas e tinha os cabelos quase raspados, vindo com um cão da raça pastor alemão. Ele se aproximou de mim, e eu, trêmula, não sabia o que fazer.
- Oi, garotinha!
Terminei de arrumar a minha calça e respondi, sem olhar para ele:
- Oi...
- Você estava fazendo xixi...
- Sim, eu estava.
- Hmmmm...
Eu estava com o batom nas mãos. Tremia feito uma vara verde. Se eu corresse, fatalmente ele soltaria o cão da coleira e este me atacaria sem o menor problema, já que ele era maior que eu.
- Dá licença, moço?
- Para onde? Deixa ver isso que você tem nas mãos.
Abri a mão e mostrei o batom.
- Posso passar no cachorro?
- Onde???
- No negócio do cachorro, ó... Sheik, mostra o negócio!
O cachorro obedeceu a ordem (!) e deixou o pênis à mostra. Fiquei apavorada.
- Deixa eu passar esse batom no cachorro...
- Moço, esse batom não é meu. Me devolve.
- Como é o seu nome?
- Talita.
- Quantos anos você tem?
- Sete.
- Você é linda, Talita. – e passou a mão pelo meu rosto.
- Moço, me devolve o batom, por favor.
- Só se você deixar eu passar no cachorro.
- Não.
- Então você vai ter que mostrar a sua florzinha para ele.
- O quê????
- Sim, a mesma florzinha que vi quando você estava se levantando e arrumando a calça. Ou mostra para ele ou eu não devolvo o batom.
- Moço, por favor... – comecei a chorar compulsivamente.
- Talita, que linda... – e passando a mão pelo meu rosto, eu tremia de desespero. Não sabia se corria ou se gritava. Estava sozinha no pátio e não havia sinal de que ninguém pudesse aparecer por ali naquela hora. Tinha que pensar rápido.
- Moço, o batom, moço, por favor... – eu suplicava.
- Ou mostra ou não tem batom.
Ameacei correr e ele fez exatamente o que eu imaginava: ia soltar o cachorro. Fiquei sem saída e comecei a pensar num jeito de sair dessa situação sem despertar suspeitas. Fui saindo da valeta devagar e dando um passo para trás de cada vez; o moço ia só se aproximando. Comecei a pensar que brigar por causa de um batom talvez fosse muito pouco, era minha integridade física que estava em jogo. Rezava e pedia a Deus para que alguém aparecesse.
Um grito ao longe assustou o homem, que se distraiu e eu aproveitei para correr. Quando percebeu que eu já tinha saído em disparada, soltou o cachorro. Eu parei na beira da escadaria de acesso do prédio à rua, e o cão vindo na minha direção. Não poderia descer a escada rolando e nem havia mais o corrimão que eu costumava descer escorregando. Fiquei estática, esperando o ataque do cachorro. Era melhor encarar o cão que encarar o homem, em cujos olhos era nítido seu desejo por mim.
Quando parei, ele deu um sinal ao cão, que imediatamente parou. Ele se aproximou novamente de mim e prendeu o animal à coleira. Tentou tocar meu rosto mais uma vez, e eu esquivei. Eu, de sete anos, estava desafiando um homem de quase dois metros.
Ele fez que ia soltar o animal novamente, mas pulei entre os dois e enrosquei a corrente do cão nas pernas do homem, e o empurrei lá de cima. Ele desceu as escadas rolando com cachorro e tudo, sem ter como se proteger. Lá embaixo, seu corpo jazia com um filete de sangue escorrendo de uma de suas orelhas, e o vidro do batom líquido estilhaçado ao seu lado. O cão igualmente inerte. Fugi e subi as escadas correndo, entrei em casa e corri para o banheiro, e tomei um banho pela primeira vez sem que ninguém mandasse. A respiração estava ofegante e a imagem daquele homem tocando meu rosto não me saía da cabeça. Não queria que ninguém me visse no estado em que estava, com os braços esfolados da corrente. Fiquei um tempão pensando ainda no que havia feito, já era o segundo a quem eu fazia o mesmo esta semana.
Logo chegou a polícia, interrogou todos os moradores, ninguém sabia de nada, nem sequer conheciam aquele homem. Outra história sem sentido, outra queda de escada, e outro homem que ninguém conhecia morto. Minha vizinha, chocada, olhando o batom líquido que até há algumas horas era seu. A polícia tentando entender o que um vidro de batom fazia ali, e minha mãe, que desceu comigo para ver o que estava acontecendo, olhando para mim.
Deveria sentir-me culpada por aquela situação? Bem, não estava preparada para mais aquela investida. Não deveria ter feito nada, só corrido. Depois pensei bem: eu não tinha culpa de ser tão “sedutora” com apenas sete anos de idade.
Era a primeira vez que eu via um batom líquido. Fiquei encantada com o pincelzinho de espuma, corri ao espelho para experimentar. Minha vizinha logo viu que seria difícil retirá-lo das minhas mãos e, por isso, não questionou quando pedi para ficar com ele. Desci as escadas feliz com o pequeno mimo e fui procurar o que fazer entre as árvores do jardim do prédio.
Pus o batom no bolso e fiquei circulando pelo pátio vazio. Eram quase quatro da tarde de um julho frio e estranho. Sendo um mês de férias, era esquisito olhar para aquele local deserto, sem crianças, todas recolhidas em casa. Havia um vento deliciosamente gélido, mas que, para os outros, era cortante; eu gostava. Continuei andando despreocupada e balançando sozinha nos galhos das árvores.
Não deu muito tempo, lembrei-me do batom no bolso, peguei-o e comecei a examinar a embalagem. Achava o máximo aqueles nomes complicados e compridos, os quais eu mal conseguia pronunciar sem trocar ao menos duas sílabas. Fazia isso com tudo quanto era produto, era uma divertida brincadeira de trava-língua. Fiquei, então, lendo o rótulo do batom, sem me dar conta de que estava sendo observada. De repente, me deu uma vontade enorme de fazer xixi, e eu sabia que não ia dar tempo de subir as escadas de volta para fazer qualquer coisa em casa. Procurei um lugar relativamente seguro, onde não pudesse ser vista. Agachei-me numa valeta de águas pluviais que passava nos fundos do pátio, era oculta pelas árvores e dali eu poderia observar o movimento.
Quando levantei para colocar minha calça de volta, tomei um susto tão grande, meu estômago gelou e o sangue sumiu da minha face. Eu estava sendo observada o tempo todo por um homem magro, moreno, que usava costeletas e tinha os cabelos quase raspados, vindo com um cão da raça pastor alemão. Ele se aproximou de mim, e eu, trêmula, não sabia o que fazer.
- Oi, garotinha!
Terminei de arrumar a minha calça e respondi, sem olhar para ele:
- Oi...
- Você estava fazendo xixi...
- Sim, eu estava.
- Hmmmm...
Eu estava com o batom nas mãos. Tremia feito uma vara verde. Se eu corresse, fatalmente ele soltaria o cão da coleira e este me atacaria sem o menor problema, já que ele era maior que eu.
- Dá licença, moço?
- Para onde? Deixa ver isso que você tem nas mãos.
Abri a mão e mostrei o batom.
- Posso passar no cachorro?
- Onde???
- No negócio do cachorro, ó... Sheik, mostra o negócio!
O cachorro obedeceu a ordem (!) e deixou o pênis à mostra. Fiquei apavorada.
- Deixa eu passar esse batom no cachorro...
- Moço, esse batom não é meu. Me devolve.
- Como é o seu nome?
- Talita.
- Quantos anos você tem?
- Sete.
- Você é linda, Talita. – e passou a mão pelo meu rosto.
- Moço, me devolve o batom, por favor.
- Só se você deixar eu passar no cachorro.
- Não.
- Então você vai ter que mostrar a sua florzinha para ele.
- O quê????
- Sim, a mesma florzinha que vi quando você estava se levantando e arrumando a calça. Ou mostra para ele ou eu não devolvo o batom.
- Moço, por favor... – comecei a chorar compulsivamente.
- Talita, que linda... – e passando a mão pelo meu rosto, eu tremia de desespero. Não sabia se corria ou se gritava. Estava sozinha no pátio e não havia sinal de que ninguém pudesse aparecer por ali naquela hora. Tinha que pensar rápido.
- Moço, o batom, moço, por favor... – eu suplicava.
- Ou mostra ou não tem batom.
Ameacei correr e ele fez exatamente o que eu imaginava: ia soltar o cachorro. Fiquei sem saída e comecei a pensar num jeito de sair dessa situação sem despertar suspeitas. Fui saindo da valeta devagar e dando um passo para trás de cada vez; o moço ia só se aproximando. Comecei a pensar que brigar por causa de um batom talvez fosse muito pouco, era minha integridade física que estava em jogo. Rezava e pedia a Deus para que alguém aparecesse.
Um grito ao longe assustou o homem, que se distraiu e eu aproveitei para correr. Quando percebeu que eu já tinha saído em disparada, soltou o cachorro. Eu parei na beira da escadaria de acesso do prédio à rua, e o cão vindo na minha direção. Não poderia descer a escada rolando e nem havia mais o corrimão que eu costumava descer escorregando. Fiquei estática, esperando o ataque do cachorro. Era melhor encarar o cão que encarar o homem, em cujos olhos era nítido seu desejo por mim.
Quando parei, ele deu um sinal ao cão, que imediatamente parou. Ele se aproximou novamente de mim e prendeu o animal à coleira. Tentou tocar meu rosto mais uma vez, e eu esquivei. Eu, de sete anos, estava desafiando um homem de quase dois metros.
Ele fez que ia soltar o animal novamente, mas pulei entre os dois e enrosquei a corrente do cão nas pernas do homem, e o empurrei lá de cima. Ele desceu as escadas rolando com cachorro e tudo, sem ter como se proteger. Lá embaixo, seu corpo jazia com um filete de sangue escorrendo de uma de suas orelhas, e o vidro do batom líquido estilhaçado ao seu lado. O cão igualmente inerte. Fugi e subi as escadas correndo, entrei em casa e corri para o banheiro, e tomei um banho pela primeira vez sem que ninguém mandasse. A respiração estava ofegante e a imagem daquele homem tocando meu rosto não me saía da cabeça. Não queria que ninguém me visse no estado em que estava, com os braços esfolados da corrente. Fiquei um tempão pensando ainda no que havia feito, já era o segundo a quem eu fazia o mesmo esta semana.
Logo chegou a polícia, interrogou todos os moradores, ninguém sabia de nada, nem sequer conheciam aquele homem. Outra história sem sentido, outra queda de escada, e outro homem que ninguém conhecia morto. Minha vizinha, chocada, olhando o batom líquido que até há algumas horas era seu. A polícia tentando entender o que um vidro de batom fazia ali, e minha mãe, que desceu comigo para ver o que estava acontecendo, olhando para mim.
Deveria sentir-me culpada por aquela situação? Bem, não estava preparada para mais aquela investida. Não deveria ter feito nada, só corrido. Depois pensei bem: eu não tinha culpa de ser tão “sedutora” com apenas sete anos de idade.
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