sábado, 3 de dezembro de 2011

Navio pirata

- Gooooooooooooooooooooooooooooooooollllllllllllll!! - escuta-se da televisão e em seguida um baque surdo.

- Merda de time! - diz o homem, ao descer um soco no braço do sofá e espalhando pipocas pela sala. Atira-as contra a tevê e continua gritando. - Pipoqueiros! É isso que todos vocês são! Uns pipoqueiros!

- Navio pirata, - diz a esposa.

- Navio pirata?

- É, mãos de gancho, venda nos olhos e um bando de pernas de pau, haha! E só um balaço para afundar!

Pausa para a cara dele: hmmmff!

Não conseguia até hoje, mesmo depois de tantos anos, processar que a esposa torcia para outro time. Quanto mais tentava convencê-la a torcer para o seu, mais ela ia ao estádio com a galera do time dela. E ela ia mais ao estádio que ele. Nunca discutiram por causa do futebol e até apoiavam o time um do outro se fosse o caso. E quando os dois times se enfrentavam, nem conversavam. No estádio, cada um na sua torcida, e sem comentários depois do jogo - regras estabelecidas desde o tempo do namoro.

O time dela não era de tanto prestígio da mídia, embora fosse mais antigo. Então ela acompanhava pelo rádio quando não transmitiam pela tevê. Certa feita, houve uma partida simultânea de ambos em cidades diferentes. Estavam em casa, ele assistia ao dele enquanto ela escutava o dela. Em um dado momento, o time dele tomou um gol, ao mesmo tempo em que o dela fez um. Obviamente, ela gritou de felicidade. E ele, achando ruim:

- Por que você está festejando o gol, hein?

- Ah, vá se ferrar! Foi gol do meu time, ora!

Rosnaram um para o outro e assim seguiram as partidas: o time dele perdeu e o dela empatou. Normal e esperado para aquele campeonato de piratas, como ela mesma dizia.

Embora tantas outras cenas engraçadas tenham sido protagonizadas pelos dois, a esposa sentia que ele preenchia seu vazio com o futebol. Não sabia exatamente o que era, parecia uma frustração de longa data. E, no fundo, até torcia contra o time dele, não por serem oponentes, mas porque sabia que o marido precisava se desencantar com aquilo, que perder e empatar fazem parte do esporte, e não era quebrando o braço do sofá que os piratas iam ganhar, tampouco o presidente do clube iria pagar seu cardiologista. Ela não sofria porque sabia o que esperar. Ele sofria e personificava o verdadeiro significado de torcer: a camisa na mão, torcendo-a exasperado.

Mais um clássico e lá se vão os dois de novo para o estádio. Cada um na sua torcida, mais uma vez. A torcida do time dela ocupava dez por cento do estádio, o dele os outros noventa. Sem muito brilho no primeiro tempo, jogadores vão para o vestiário carregando um 0 x 0. Nas arquibancadas, unhas roídas dos dois lados. Já o casal podia se ver, pois estavam próximos das grades que separavam as duas torcidas. Mandavam beijinhos um para o outro.

Começa o segundo tempo e a coisa vai ficando mais tensa. Aos quarenta e dois minutos, o único gol da partida foi comemorado até com lágrimas pela pequena torcida. Aponta o centro do campo o juiz, final de jogo. Davi 1 x 0 Golias. Um jejum quebrado.

No estacionamento, ela radiante após a vitória; ele arrasado, a derrota estampada na cara e com a nítida sensação de que sua camisa perdia o brilho. Ambos se entreolhavam enquanto os outros torcedores iam passando por eles. Mal podia acreditar que depois de tantos anos o time da esposa fora capaz de vencer o seu. Imaginou, nesses dez metros que o separavam, que ela iria dizer tudo o que ficou entalado na garganta durante este tempo. Que iria rir da sua cara, que lhe faria gracejos pelo resto da semana.

Ele sorria sem graça. Não aguentaria ser zombado. Travava um conflito interno enorme: não queria que fosse a primeira vez que ia discutir com a esposa por causa do futebol, mas se ela fizesse alguma gozação... Não, não podia pensar nisso. Continuava olhando a esposa, sem coragem de se aproximar. Tremia, pensando no que será que ela falaria, não queria brigar com ela. Mas estava revoltado. O time dele perdeu e agora ele estava nas mãos dela.

Alguns torcedores pararam para ver a cena, as camisas distintas se encontrando ali fora, prontos para apartar uma possível confusão - ou tomar parte dela. Fotógrafos e polícia a postos. Ela, mesmo sorrindo marotamente e louca para rir, então, tomou coragem e foi se aproximando dele. Deu-lhe um beijo demorado, secou-lhe o suor da testa com a faixa que ele trazia na mão e disse:

- Vamos para casa. Hoje você merece uma massagem.

- Você não vai rir de mim?

- Não. Amanhã vou rir com você quando, no lugar desse navio pirata, esta nossa foto for eternizada na capa do caderno de esportes.