sábado, 25 de setembro de 2010

Minh'alma engenheira

Deixem-me com minh'alma engenheira
Aprendi a engenhar antes mesmo de ser mulher
Aprendi a ser mulher depois de muito chorar
Depois de muito escolher e muito penar
Deixem-me com minh'alma engenheira
Aprendi a ser cérebro, pensar e criar
Antes mesmo de saber me pintar
Deixem-me com minh'alma engenheira
Minhas falas cheias de graça
Minhas unhas cheias de graxa
Minhas engrenagens e polias
Deixem-me com minh'alma engenheira
Com todo meu poder e fantasias
Com toda sorte e privilégios
Deixem-me cometer os sacrilégios
Que assim se consideram por eu ter útero e ovários
Deixem-me com minh'alma engenheira
Escolher aquele entre tantos vários
Que valoriza o pensar, o criar
O entender, o sofrer, o querer
Antes mesmo de eu saber me pintar.

Escalada

Foram vales gigantescos e montanhas pontiagudas
Subidas íngremes e o corpo que se vai
Caminhando pela estrada sem sentido
A esmo, subindo e subindo a colina

Em uma agulha ele contempla
Todos os contornos da nação e mais além
Vence os obstáculos do solo
O mato, a neve, as pedras
E sobe com a visão do céu
E das poucas aves que o acompanham

Cai
Arrebenta o joelho na escalada
A dor lhe é insuportável, mas já era previsível
Que se machucasse em uma pedra solta que não soubera reconhecer
Pedras tão parecidas com as rochas já firmes da montanha
O mato lhe dá alergia
Roça-lhe as pernas, os braços
Deixa-lhe sementes nas roupas
E vai ficando menos denso a cada trecho mais íngreme
A neve consome-lhe os pés
Não estava preparado para tamanha frieza com beleza
A alvura que lhe aparecia em volta o encantava
Mas ao mesmo tempo cegava-lhe e o enregelava
Ai, não queira que lhe gangrenem os pés!

Já a montanha de grau cinco
Pede mosquetões, cordas, estribos
Não sabe porque escolheu a face mais difícil
Mas já que estava ali era melhor encará-la
Tamanho rochedo quase intransponível

Ao fim, ao contemplar toda a nação deste ponto,
Abre as asas negras e voa até a boca da montanha vizinha
Mergulhando no vulcão em erupção
A lava consome-lhe as penas, a pena,
A raiva, o ódio
O ócio, o corpo, o coração
E torna ao pó de que da terra foi feito

domingo, 12 de setembro de 2010

César

você é organizado e eu sou bagunceira
você é médico e eu engenheira
você é calado e eu faladeira
você é tímido e eu sou só zoeira
você é colombiano, eu sou brasileira

você é lúcido e eu sou a loucura
você é alto, já eu não tenho altura
você é força e eu sou doçura
você é precisão e eu sou ternura

você é do Verde, eu torço para o Coelho
se lhe dói a garganta, me dói o joelho
meu esmalte incolor você quer vermelho

eu gosto de suco, você coca-cola
sou desastrada, você sabe o que rola
se eu quebro tudo, é você quem cola
se eu não ligo, aí você me enrola

adoro seu jeito, completa o meu
me faz bem, me fascina, você já é meu
meu coração só pede por um carinho seu
assim somos dois e você é meu eu

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

"Couves-flores" do lado de cima

Meu telefone ficou mudo a manhã inteira no escritório. Quando todo mundo saiu para almoçar e eu fiquei sozinha, finalmente ele resolveu tocar. Atendi como de costume, e logo escutei a voz áspera e pouco musical dela.

- Oi, Glaucia. Boa tarde. Você esteve com o Marcelo no fim de semana, não é?

- Sim, estive, por quê?

- Quero falar com ele.

- Mas se você está querendo falar com ele, ligue para ele, ora. Não para mim.

- Não estou conseguindo falar com ele. Imaginei que ele estivesse on-line no MSN com você. Diga-lhe que quero vê-lo.

- Está bem, eu direi. E o quê mais você quer que eu diga?

- Diga-lhe que quero almoçar com ele. Agora. Estou perto da casa dele. Restaurante Santuário.

- Sugestivo nome, ahahaha!

Realmente ela era muito estranha. Chata, eu diria. Não sei como o Marcelo gostava dela, porque ela era ciumenta demais. Para ele, ela tinha uma voz doce, um perfume agradável, usava calcinha lilás, tinha um sorriso lindo. Eu enxergava uma velha curvada, de um hálito horroroso e sem dentes. Não, eu não sou ciumenta, ela que era. Eu sou só amiga dele e ela que ficava me perseguindo, ora me rechaçando porque eu estava perto e ela não podia namorá-lo, ora meio que pedindo ajuda para seduzi-lo mais uma vez. Como boa amiga dele que sou e, por conseguinte, dela também, eu fazia de tudo para agradá-los.

Atendendo, então, mais uma vez ao pedido dela, chamei-o no MSN.

- Marcelo, ela está querendo te ver. Disse que está no Santuário.

- Agora?

- Sim. Agora. Quer almoçar com você.

- Obaaa!

E eu com meu pensamento: ai, Marcelo, lá vai você de novo atrás dessa chata ciumenta! Eu vou lá. Não vou deixá-la brigar com ele de novo. É sempre assim. Ela o chama, diz palavras carinhosas, o seduz, depois faz charminho, briga e o abandona. Por que não o leva de uma vez, caramba? No fim, ele fica todo deprimido, aí me liga e diz que mais uma vez ela o fez de bobo. Desta vez eu não vou deixar. Vou avacalhar o encontro dos dois e colocá-la para correr.

Chegando ao restaurante, lá está ela, na mesa, esperando pelo Marcelo com aqueles olhos de carnívoro voraz. Meu amigo, não vou deixar com que ela brinque com você de novo.

- Boa tarde, mocinha! - disse eu a ela, toda melosa e irônica. - Quer que eu te sirva?

- Não preci...

- Ah, precisa. - interrompendo-a, fui logo pegando um prato e enchendo-o de cebolinha cristal.

- Não como cebola, Glaucia.

- Cebolinha cristal é o máximo. Olhe que lindas azeitonas.

- Porra, Glaucia, não como azeitona! Não tenho dentes e tenho preguiça do caroço!

- Uhum. Olha, couve-flor. Vou colocar aqui em cima, você vai comer "couves-flores" do lado de cima!

- Glaucia, não me sirva. Você é quem vai comer isso. Cadê o Marcelo?

- E eu sei lá dele? Vamos aproveitar a companhia uma da outra enquanto ele não chega. Fique à vontade...

E continuei colocando as coisas mais sem nexo no prato dela. Pimenta malagueta pura, peixe frito, que sei que ela odeia. Nesse ínterim, Marcelo chegou e ficou estático na porta do Santuário, a cara dela de "quem essa maluca pensa que é?" e a minha cara de desafio diante dela. Ele ficou observando-nos durante um bom tempo e, ainda meio assombrado, assentou-se conosco. Calado, escutava atônito as minhas provocações.

- Você passou perfume de túmulo hoje, queriiidaa?

Nossa, eu estava terrivelmente irônica. Perguntei a ela se ela não tinha o que fazer, se não era melhor ir seduzir o Hugo Chávez. Quem sabe, se ela o levasse, o mundo não teria um pouco mais de paz. Mas não, ela queria o Marcelo. O meu amigo. Tanta gente menos útil no mundo e ela querendo levá-lo na conversa. E eu não ia deixar.

Por fim, provoquei-a ainda mais e me ofereci para pagar a conta. Enquanto ia ao caixa, vi que ela nem moveu o garfo do lugar. É, realmente ela não come, por isso está caquética daquele jeito.

Saímos do restaurante e descemos a avenida, os três juntos, conversando, e eu a cada minuto mais chata com ela, tentando dissuadi-la da ideia de levar o Marcelo embora. Ainda tentei emendar uma piada, mas não deu tempo. Os olhos dela se converteram em duas bolas de fogo, que me miravam com ódio e dor.

- Ciumenta é a mãe, Glaucia!

É, realmente a dona Morte não estava para brincadeira. Dizendo isso, me empurrou com a gadanha na frente de um vinte-e-dois-qualquer-coisa.