domingo, 31 de janeiro de 2010

Teu veludo

Retumba tua voz nos meus ouvidos,
Rasga a terra por onde passas!
Por teu veludo, de mim tudo faças,
Impressiona à tua volta estampidos!

Passeio pelas entranhas da terra
Sempre com teu veludo risonho
De noite, e no verão eu sonho
Com teu veludo que nunca erra.

Teu veludo é som mavioso,
É o teu belo acorde harmonioso
E do teu peito sai placidamente.

E vibra a fonte intermitente:
Energia, voz, alegria e gozo
Imprimem no ar teu veludo estrondoso!

(1996)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A vida é um mingau III

- E aí, o que você achou do novo Mingau?

- Gostei, mas achei os textos meio exagerados...

- Por quê? Só porque eu matei você em dois contos seguidos?

Fonoaudiologia prática e descomplicada

- Você outro dia falou uma besteira como fonoaudióloga que me deixou boquiaberto.

- E que besteira eu falei?

- Você disse que a comunicação verbal não é a mais importante.

- E realmente não é. Se a comunicação verbal fosse a mais importante, não precisaríamos da escrita, nem os cegos do Braille, nem os surdos da Libras. Existem várias formas de comunicação e todas são igualmente importantes.

- Continuo não concordando, porque você mesma disse que a fala é a atividade motora mais complexa do cérebro humano.

- E é, mas a comunicação verbal não é a mais importante. Quer a prova? Quando a gente levanta o dedo do meio, por exemplo. Isso traduz uma frase de quatro palavras. QUATRO PALAVRAS! E você sabe quais são. Descobriu como é mais eficiente a linguagem gestual?

domingo, 3 de janeiro de 2010

Tortura

O casal ria e conversava animadamente. Estavam no apartamento da irmã da esposa, comemorando o aniversário do cunhado.

Todos comeram e beberam muito e, por isso, a irmã não os deixou voltarem para casa, e ofereceu-lhes um quarto para passarem a noite. Fora realmente uma decisão acertada, pois o esposo não estava com o menor reflexo, especialmente para pilotar uma motocicleta. O cunhado o ajudou a guardá-la na garagem e novamente subiram ao apartamento.

A irmã preparou-lhes a cama de que dispunha: estendeu um lençol num colchão de solteiro que colocou no chão, pôs ao lado um edredon e dois travesseiros macios. Como a porta era de vidro, tomou o cuidado de cobri-la para que, caso o fogo do álcool se transformasse em "fogo na roupa", os dois tivessem a privacidade respeitada. A irmã e o cunhado despediram-se e foram dormir.

O casal ajoelha-se no colchão para tirarem as roupas, que cheiravam a cigarro. Mal se olharam e o desejo provocou-lhes. Beijaram-se ardorosamente, e fizeram amor como nunca, tomando o cuidado de sufocarem seus gritos de prazer com os macios travesseiros que a irmã lhes emprestara. Adormeceram.

Lá pelas três da manhã, a esposa acorda incomodada com as reações de seu intestino à quantidade de gordura consumida. Tentava levantar-se para ir ao banheiro e, nesse instante, o esposo acordou. Ele a abraçava e não a deixava se levantar, querendo outra sessão de amor. A esposa, irritada, falou que não queria mais, porque estava passando mal, e o esposo ficou transtornado. Começou então a torturá-la, beliscando-a e dizendo que não gritasse. Falava que ela o usara para ir à casa da irmã e que se era para fazer desse jeito, que não o chamasse mais, que ela poderia muito bem ir de ônibus. Puxava-lhe os cabelos e sufocava seus gritos com o travesseiro, apertava-lhe os mamilos, mordia-lhe os braços.

A esposa tentava justificar-se, dizendo que o amava, mas que de toda forma seria impossível fazerem amor com ela passando mal, que não o havia usado, não havia necessidade daquilo, já que ambos dispunham de carro e ela tinha habilitação. Cada vez mais sofrendo com a tortura, seu choro transformara-se num fio de voz, pedindo pelo amor de Deus para que o marido parasse.

Ao que parece, Deus ouviu suas preces, e ele levantou-se para urinar. Ao chegar ao banheiro, estranhou uma certa quantidade de esperma ressequido em sua virilha, mas ainda assim voltou para torturar a esposa. Mais cobranças, mais tortura... por fim, ela, percebendo que ele, por estar bêbado, não se lembrava do amor que haviam feito, diz, desesperada, somente articulando as consoantes:

- Me cheiraaaaa! Me cheiraaaaaaaaaa!

Ele não cheirou, mas conseguiu ligar o que a esposa pedia ao fato de ter encontrado o esperma em sua virilha. Seus olhos claros tornaram-se negros, tamanha fora a dilatação de suas pupilas. Pediu perdão de todas as formas a ela, que chorava compulsivamente sobre os travesseiros. Arrependido, acolheu-se num canto e lá permaneceu até o amanhecer. A esposa adormeceu.

De manhã, novamente pediu perdão à esposa e quis deitar-se ao seu lado. Ela consentiu e, com o abraço, ele teve vontade de amá-la de novo. A contragosto, permitiu que a penetrasse, sentindo-se uma prostituta por estar sujeitando-se àquele estupro da alma. Vestiram-se, tomaram café com a irmã e o cunhado e voltaram para casa.

Mais tarde, enquanto ela preparava calada o almoço, o marido não parava de lhe pedir perdão pelo que lhe fizera durante a madrugada. Ela o serviu e almoçaram em silêncio. Enquanto comia, sua visão se turvava, e não sabia se era pelas lágrimas. Também sentiu calafrios e um revertério no estômago. Dizia à esposa:

- Querida, eu quero morrer pelo que fiz a você! Me perdoe!

Ela, sem proferir uma palavra, apenas olhava sorrindo para o tubo de chumbinho em cima da pia.

A vida é um mingau II

Manhã de primavera. Duas amigas, Lúcia e Ana, solteiras e já mais velhas, estão conversando. A primeira pergunta à segunda:

- Ana, por que você não arranja um marido, um velho para você?

- Eu? Velho? A gente arruma um velho e depois tem que levá-lo para a praça para tomar sol, buscar remédio no posto, levar para consulta no SUS... e, para completar, sem dente, e só toma mingau. Nada contra os velhos, até porque eu sou uma... Ao invés de arrumar um amor, vou arrumar é trabalho...

Mais tarde, foram a uma novena, organizada por uma amiga do bairro. Após a reza, serviram alguns salgadinhos. O pai da anfitriã estava na sala, somente assistindo ao falatório. Lúcia pergunta:

- E o seu Antônio, não vai comer nada?

E a filha responde:

- Não, ele só toma mingau!

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Paranoia

Durante o dia havia brigado com a esposa porque um sujeito num veículo prata a cumprimentara. Era um conhecido de anos, mesmo assim ela nem se lembrava qual o nome do rapaz.

Ele foi para o trabalho, imaginando a cena em que porventura a esposa teria conhecido o moço, se tivera algo com ele no passado, se fora um caso de adolescência. Fato é que, na cabeça dele, a esposa tinha um caso, e ele provaria.

Ao chegar à esquina de casa, tarde da noite, vira um carro, do mesmo modelo daquele do rapaz, parado à porta. Não era prata, mas azul marinho. Começou a elocubrar milhares de pensamentos, imaginava o deliciar da esposa nos braços do rapaz do carro prata e, pior, os dois rindo-se do homem traído. Entrou em casa, pé ante pé, e viu a esposa dormindo, e deitou-se ao lado dela. O carro azul continuou parado lá fora.

Como haviam brigado, pensou logo que a esposa ligara para o rapaz, para que tivessem um dia agradável que ele, o marido, não fora capaz de lhe dar. Pensou nas compras que ela fizera com o rapaz do carro prata, no prazer que ela teve durante longas horas com ele, na ânsia com que os dois ardentemente se desejavam, na chacota que ele teria virado na cama dos dois, via-os de mãos dadas na rua, no parque, via o rapaz de amizade com seus filhos, via o rapaz penteando os cabelos da esposa, via o rapaz  mandando beijos da janela do automóvel.

Ah, esse rapaz! Ele está tirando o meu sossego!

Acordou e, num rompante de fúria, estrangulou a esposa. Perplexo, arrependido e confuso pelo que havia acabado de cometer, dirigiu-se à cozinha e cravou uma faca no próprio peito.

E lá fora continuou parado o carro azul...